quarta-feira, 11 de junho de 2008

A jardineira

Um belo dia, ela acordou, virou-se na cama e se sentiu estranha. Quem era aquele homem ali, deitado ao seu lado? Decerto não era sua paixão. Aquele homem que a surpreendia no meio da tarde com um telefonema cheio de saudades, que virava o volante do carro repentinamente mudando o rumo para dentro de um motel, que dizia o quanto a amava não apenas na hora do sexo, mas a cada olhar que lhe lançava nos momentos menos charmosos do dia. Enquanto escovava os dentes, enquanto mexia a panela do brigadeiro que se lambuzariam, enquanto vestia a lingerie nem tão sexy assim para sair pra trabalhar...
Quem era aquele homem ali? Assustou-se! Há tão pouco tempo só pensava nele, só tinha olhos pra ele. E agora, com a luz do sol rasgando a persiana escolhida com tanto carinho anos atrás, perdia-se em cada detalhe daquele corpo seminu ainda reconhecendo sua beleza, mas sem sentir o arrepio de sempre. O sempre virou outrora... Virou lembrança. Virou desejo de voltar a desejar alguém tão intensamente.
Num movimento lento, o então estranho acordou. Espreguiçou. Olhou para ela. Sorriu. Um lindo sorriso vindo de dentes tão brancos, de uma boca tão linda. Sem nada dizer, ela se aconchegou em seu peito e foi envolvida por braços fortes. Tão másculos. Quem olhasse a cena de fora, diria que não poderia haver momento mais perfeito do que aquele. Mas ela não se sentia mais segura naquele abraço. Aproveitou para se aninhar naqueles pêlos tantas vezes explorados com a ponta de suas unhas longas, escondendo seu rosto ali, em fuga. Queria evitar que os olhos dele cruzassem com os dela e lessem o que era tão óbvio: ela não o amava mais.
Como isso foi acontecer? Não sabia ao certo. Assim como a semente do amor cresce ao ser regada com o carinho, com a atenção, com o companheirismo, a semente do desamor também foi brotando cada vez que ela se via sozinha em casa, cada vez que ele não dizia ‘eu te amo’ nos momentos banais, cada vez que ele preferia, ao voltar pra casa à noite, dividir as novidades do seu dia com a tela da TV.
Aquele estranho, de repente, carinhou os cabelos cacheados dela com extrema delicadeza. E percorreu a outra mão por suas costas nuas. De sua boca, saiu um inesperado ‘adoro acordar com você’. Ela estremeceu. Entendeu aquilo como um ‘eu te amo’ dito com outras palavras. Seria ainda possível? Ergueu a cabeça de seu esconderijo e mirou bem dentro dos olhos dele. Pretos como jabuticabas. Entrou em cheio naquele olhar e mergulhou fundo no interior do desconhecido. Passou por trás de seu nariz, de sua boca... Atravessou a garganta e invadiu o esterno. Estacionou no coração. E que surpresa... Em letras garrafais, lá estava escrito o nome dela. Aquele homem ainda a amava! Não expressava seus sentimentos como antes, mas ainda a amava.
Envergonhada, refez o caminho e tornou a pousar seus olhos sobre os dele. Deu um longo suspiro e sorriu. E o beijou suavemente.
Levantou-se de súbito, foi até a varanda e pegou a grande tesoura com que podava suas plantas. Voltou ao quarto e começou a cortar todas as ervas daninhas que estavam crescendo em seu casamento. Muitas delas, ponderou, haviam sido plantadas por ela mesma. Ao final, regou a grande planta do amor, que crescera ao longo de tantos anos, mas que andava tão sem vida. E ela recuperou seu viço. E ela voltou pra cama. Abraçou o ex-estranho e, dessa vez, não se escondeu mais.

4 comentários:

Marcio Bruno disse...

De novo primeirão a passar por aqui e registrar. Só não me peça para comentar, não sou tão bom como palavras escritas.

Beijos

Fernando Freire Jr. disse...

Extrememente oportuno o texto. Dia dos Namorados, época de renovar sentimentos, e lá vem você chamar a atenção para uma coisa tão comum nos relacionamentos. Por um momento eu achei que o texto ia acabar triste, mas você surpreende e dá a volta por cima. Fui casado duas vezes e sei que as mulheres são muito mais batalhadoras numa relação do que os homens. As eternas jardineiras. Mas, olha, eu aprendi a lição viu! Sou um homem atento às ervas daninhas desde a primeira separação! Beijos!

P.S.: Seus personagens tem vida. Queria ter esse dom para a ficção, mas eu só teria sucesso com histórias recheadas de mortos-vivos...rsrs

Maria Teresa disse...

Anusca,
obrigada pelo belíssimo texto!
Eu estava precisando ler algo deste quilate.
O que está faltando para o seu voo solo?
Você está pronta!
Um beijo saudoso,
Mª Teresa

sidney ferreira disse...

Não é toa que te amo. O mundo há de conhecer teu nome em letras garrafais tão grandiosas quanto as encotradas no coração.