quinta-feira, 31 de maio de 2007

Cabeça de mulher

Aquele dia, ela havia acordado diferente. Seu sol interior parecia brilhar mais forte. Saltou da cama animada, não sabia bem o porquê. Foi direto ao banheiro e, ao se limpar, percebeu no papel higiênico algo que vinha perseguindo há vários meses. Algo que, neste momento de sua vida, era mais valioso do que ouro. Um muco. Um simples muco. Transparente, elástico, inodoro. Era o tal muco que sua ginecologista havia lhe alertado: “Quando o vir, é sinal de que está fértil.”
Um sorriso de orelha a orelha se estampou em seu rosto. É hoje! Pena que o marido já havia saído para trabalhar, senão seria ali e agora. Sem demora! Sem espera! Ela estava cansada de esperar... Casada já havia cinco anos, depois de um longo namoro de sete, seu relógio biológico tocava insistentemente exigindo que aquele ventre gerasse uma criança. Só que as coisas não eram tão fáceis assim. Se dependesse só dela, tudo bem. Mas o marido tinha sempre uma desculpa na ponta da língua. “Vamos curtir mais a vida de casados.” “Vamos esperar a gente se estabilizar.” “Vamos primeiro fazer uma viagem à Europa.” E o tempo passando. E o relógio cobrando.
Aquele dia tinha tudo para ser muito especial. Foi à aula de ioga, acalmar sua mente diante de tamanha expectativa. Foi à academia, esculpir aquele corpinho que já estava começando a querer perder as formas. Foi à igreja, pedir a Nossa Senhora e a todos os santos que dessem uma forcinha para o que estava para acontecer logo mais. E como toda boa mulher que se preze, no final da tarde deu um pulo no shopping. Comprar uma lingerie nova poderia ser um bom tempero.
O fato é que, após tanto tempo juntos, os tambores da paixão já não rufavam como antigamente. Mas algo incrível acontecia naquele dia: ela estava tomada por um furor adolescente. Seu corpo ardia. Se alguém duvida que a libido da mulher aumenta durante o período fértil, como alguns sexólogos costumam dizer, lá estava ela para provar que é a mais pura verdade. E, assim, fez algo que não fazia há muito tempo: se preparou para ele, para aquele homem a quem nem precisava conquistar mais.
No início da noite, tomou um daqueles banhos demorados. Mandou vibrações de amor para cada parte de seu corpo. Passou creme esfoliante. Usou o sabonete líquido mais cheiroso que tinha. Cuidou da depilação. Acariciou todo seu corpo enquanto aplicava o hidratante. E tratou de colocar gotas de seu melhor perfume em lugares estratégicos. Deixou os cabelos soltos e bem escovados, em lugar do rabo de cavalo sem graça que insistia em usar em casa todas as noites. Foi para a sala e não ousou chegar perto da tevê. Acendeu um incenso, ligou o som. No ar, misturavam-se o aroma do almíscar e notas musicais românticas. Naquela noite, ela estava se amando. E estava louca para amar e ser amada.
Finalmente, ele chegou. Foi recebido com um grande sorriso. Daqueles tão radiantes que não via faz tempo. Ela o abraçou e o beijou e deu a entender que queria algo mais. Ele pediu apenas um tempo para tomar um banho e comer alguma coisa. “Está bem.” Disse ela. “Mas não demore.” Aquela impaciência para se entregar estava dominando sua alma. Seu corpo todo latejava. Sentou no sofá e mudava de posição incessantemente. Difícil relaxar, sabendo que em breve estaria próxima de realizar seu grande sonho.
Cansada de esperar, se antecipou e seguiu para a cama. Passados uns 15 ou vinte minutos – que pareceram uma eternidade –, ele se juntou a ela no leito onde há mais de 1.800 dias vinham se deitando, sem que nada de sobrenatural acontecesse. Mas aquela noite tinha tudo para ser mágica.
– Te amo muito. Amo estar do seu lado – disse ele, surpreendendo-a, enquanto a abraçava docemente.
– Mas você dorme do meu lado todas as noites! – brincou ela.
– Mas eu não te sinto como estou te sentindo agora...
Tinha magia no ar! Era inegável e inexplicável. Ela ficou ainda mais excitada ao ver que ele, daquela vez, estava diferente também. Mais carinhoso, mais presente. O que estaria acontecendo? Só podia mesmo ser o Universo conspirando a seu favor, para que a concepção fosse cercada de uma aura toda especial.
Entregaram-se à paixão – sim, à paixão! – como nunca. Viveram momentos deliciosos e, ao mesmo tempo, ternos. Pareciam dois namorados se descobrindo. Mas eram velhos conhecidos na cama, que naquele dia desvendavam uma nova faceta. Ao final do último suspiro, ela não cabia em si de tanto contentamento. Ele, cansado, não demorou muito a afundar nos lençóis. Ela não. Ainda ficou vários e vários minutos sonhando de olhos abertos.
No dia seguinte, flutuava. Sentia-se diferente. Caminhando pela rua, surpreendeu-se ao ver que levara a mão à barriga. Tirou rapidamente, com um risinho fugidio, pensando: “Cedo demais.” Ao passar em frente da confeitaria que sempre fez parte de seu trajeto, mas nunca chamou sua atenção, aguou quando viu na vitrine uma bandeja de bombas de chocolate. Apesar da eterna dieta, entrou e comeu duas. Seguiu para a academia como era de costume. Só que, ao chegar lá, surpreendeu a recepcionista: “Vim trancar a minha matrícula. Daqui a três meses eu volto. E para fazer apenas hidroginástica.” Foi embora rindo sozinha, sem dar explicações.
Uma semana se passou. Ela subiu na balança e viu que o ponteiro caminhara um quilo adiante. Nem se importou com isso. Estava feliz demais ao constatar que seu corpo ganhava formas novas. Entrou no banho e deixou a água quente correr por sua pele, enquanto passava a mão por seu ventre e seus seios. Nossa, de repente percebeu o quanto eles estavam inchados! E um pouco doloridos. Um êxtase percorreu sua espinha. Era mais um sinal de que tudo estava dando certo.
Duas semanas se passaram. Ela foi ao shopping, decidida a já começar os primeiros preparativos para o enxoval do bebê. A cada vitrine que fitava, se enternecia diante de tanta graciosidade. Roupinhas tão pequenas e tão cheias de significado. Acabou optando por comprar nada. Esperaria o resultado positivo para então surpreender o marido com o exame, embalado junto a um sapatinho de bebê. Seguiu para a Praça de Alimentação, para alimentar aquele apetite que não parava de crescer. Lá, se enterneceu ao ver uma mãe passeando com seu filho no carrinho. E encheu os olhos de lágrimas ao contemplar uma outra oferecendo o seio. Estava com as emoções à flor da pele.
No dia provável de sua menstruação descer, não veio. Passaram-se mais um, mais dois, mais três dias. E nada. Enquanto sua empregada fritava um bife na cozinha, o cheiro que invadiu a sala pareceu fazê-la querer vomitar. Em vez de achar a situação incômoda, recebeu-a de bom grado. Se grávidas enjoam, ela também queria enjoar. Logo depois do almoço, aproveitou para dormir a tarde toda, porque é assim que as mulheres que estão esperando bebê fazem.
Acordou sentindo-se estranha. Diferente. Engraçado... Seu sol interior parecia não brilhar mais. Saltou da cama assustada, sabendo bem o porquê. Foi direto ao banheiro e, ao se limpar, percebeu no papel higiênico algo de que vinha fugindo há vários meses. Algo que, neste momento de sua vida, era mais execrável do que rato morto à beira da calçada. Sangue. Uma farta mancha de sangue. Vermelha, escura, com cheiro forte. O sorriso que a acompanhava há quase três semanas se esvaiu. Assim como suas esperanças.
Ainda ali sentada, chorou, xingou, blasfemou. Por quê? Por quê? Era só o que se passava em sua cabeça de mulher. Todos aqueles sintomas nada mais eram do que sinais pré-menstruais. Mas seus olhos só enxergavam o que queriam ver.
Levantou-se, enxugou as lágrimas. Preparou-se para mais um mês pela frente. Desistir, nunca. Isso também faz parte da cabeça de mulher.