quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Reconciliação

Quando eu o olhava, caía em pranto. Como ele podia ter chegado a esse ponto? De todos os erros que cometeu, o pior havia sido esse. Saiu da linha, se perdeu. De belo tornou-se estranho. De harmônico tornou-se um tom em desafino.
Mas resolvi lhe dar uma segunda chance. Decidi amá-lo novamente, porque só assim o ajudaria a sair dessa. Passei a escolher quem andaria com ele. Até mesmo com quem ele se sentaria à mesa era eu quem decidia.
Pouco a pouco, ele foi tomando jeito. E uma nova história de amor e admiração se iniciou. Mas não pense que foi fácil. Foi preciso dedicação, luta, esforço, determinação. Para mudá-lo, porém, estava disposta a tudo.
E consegui. Um belo dia, me olhei no espelho e o vi refletido:
Meu corpo esbelto! Você voltou para mim!

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Um feliz "Feliz Aniversário"

Vinte e quatro de fevereiro de 2057. Sopro as velinhas que registram a minha nova idade: 88 anos. Sinto-me ótima! Jamais poderia imaginar que envelhecer fosse tão bom assim. Tenho à minha volta, além da minha família, a maioria dos meus amigos de juventude. Todos exibem a mesma fisionomia feliz que a minha. Somos saudáveis e ativos, e ainda temos uma longa estrada a percorrer pela frente. Agora que a expectativa de vida no Brasil beira os 130 anos, nos sentimos na flor da idade!

Lembro com pesar de minha mãe, no início do século XXI, que possuía uma caixa cheia de remédios. Mais ou menos 15 para tomar diariamente, que cuidavam de seu coração, de sua pressão, de seu estado emocional, de suas articulações, de sua memória e por aí vai. Lembro também de minha mãe andando pelas ruas com passos desequilibrados, enxergando mal e sentindo a maior dificuldade para subir uma simples calçada! E olha que ela tinha 70 anos... Uma garotinha em comparação à minha idade atual. Mas agora, graças aos avanços da Medicina, envelhecer se tornou um fardo levíssimo de se carregar.

A primeira descoberta que os cientistas fizeram foi a de que a mente era a responsável por tudo o que nos acontecia. Então, trataram de desenvolver um chip que, uma vez implantado sutilmente sob a pele, envia comandos de positividade para o cérebro. Assim, à medida que as pessoas vão envelhecendo, sentem-se felizes, e não tristes, por verem sua pele enrugando, seus cabelos encanecendo. E esse estado de ânimo positivo faz com que seus organismos permaneçam saudáveis. Nada de diabetes, nada de artrite e artrose, nada de osteoporose, nada de catarata! Ainda assim, para aqueles idosos mais resistentes aos efeitos do chip, pesquisadores desenvolveram uma única pílula – sim, uma única pílula! – capaz de prevenir e curar todos esses males comuns a quem envelhece.

O aumento da expectativa de vida também se deveu a outros fatores: à descoberta da cura do câncer e da Aids, ao controle da epidemia de obesidade, à diminuição vertiginosa da violência, ao aumento impressionante da direção consciente e, acima de tudo, ao freio que os cientistas conseguiram exercer sobre os efeitos catastróficos que o aquecimento global estava prestes a ocasionar. Numa ação conjunta com 100% da humanidade, diversas medidas foram tomadas para evitar a emissão de gases poluentes e para conter o desmatamento. A campanha dos governos de todos os países foi tão eficaz que teve adesão plena. E, para culminar, os cientistas conseguiram desenvolver uma tecnologia que recompôs os buracos na camada de ozônio.

Ah, se minha mãe ainda estivesse viva para ver tudo isso... Para participar de minha festa... O dia está lindo, com temperatura muito agradável, como é comum naquele ano de 2057. E eu ali, cercada por meus amigos, meu marido, minhas filhas, meus netos e até um bisnetinho de colo, ouvia o Parabéns Pra Você muito orgulhosa, por poder estar participando de um Brasil melhor, de um mundo melhor. Ao soprar as velinhas, fiz o pedido:“Que eu ainda viva muitos anos para curtir tanta felicidade com saúde, alto astral, bem-estar, sensação de segurança e liberdade como sinto agora, nos meus 88 anos!”

Em 2057, este pedido será facilmente atendido.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Um Natal sem pipoca

Todos os anos, nada mudava na ceia de Natal da família de D. Cristina: muito amor, muita união entre ela e os sete filhos pequenos e, na mesa... pipoca com groselha! Quando algum vizinho com alguns tostões a mais se solidarizava, a ceia ganhava novas cores com rabanada e frango assado. Ainda assim, a groselha continuava lá, e D. Cristina fazia o brinde à meia-noite como se vinho ali tivesse.
Pipoca era o prato preferido dos meninos de D. Cristina. A escadinha se deliciava com aquele quitute barato nas datas comemorativas, mas que para eles adquiria requintes de banquete. Tanto é que, quando um gatinho vira-lata branco, de corpo magérrimo e cabeça imensa apareceu no quintal daquela família, virou logo agregado e não podia existir nome melhor para batizá-lo: Pipoca!
Pipoca virou um gatão. Mas seu corpo continuou esquálido e a cabeça imensa, como um milho estourado na panela. Naquele 24 de dezembro, Pipoca saiu para seus bordejos habituais e a criançada nem ligou. Estava muito atarefada. Zica, a mais velha, já com seus 13 anos, comandava os irmãos menores na arrumação da casa. “Temos que deixar tudo muito limpo! Mamãe vai chegar cansada do serviço e hoje é dia de Natal. Temos que dar essa alegria pra ela!”
Quando D. Cristina chegou, no final da tarde, foi com brilho nos olhos que mostrou à filharada a aquisição para a ceia daquela noite! Com uma das mãos em riste, como que segurando um prêmio, balançava uma sacola de mercado com um frango dentro. “Meninos, tinha um político lá na praça distribuindo frangos! Sorte nossa que esse ano agora vai ter eleição! Nos demos bem!”
A gritaria foi geral. A meninada estava empolgada. O frango foi imediatamente temperado com ervas cultivadas sabiamente numa nesga de terra do pequeno quintal e seguiu pro forno. Quando o cheirinho começou a invadir o casebre, eis que aparece na sala o Pipoca, trazendo sua própria iguaria de Natal presa à boca. Uma grande posta de bacalhau! Imensa, gorda! Já devia estar de molho há mais de um dia, quando o gato gatuno roubou de alguma janela desprevenida da vizinhança.
D. Cristina mal acreditava no que via. Renatinho, o caçula, tentou em vão tirar o bacalhau dos dentes de Pipoca. O bichano não soltava! Zica e os outros seis irmãos uniram forças que nem cabo-de-guerra, tentando puxar o petisco e nada! Pipoca se agarrava ao seu jantar e já estava com o pêlo ouriçado, pronto para dar o bote no primeiro que se intrometesse entre ele e o bacalhau.
De vassoura em punho, D. Cristina resolveu a situação. Deu umas tantas vassouradas no bichano, que não houve jeito de o Pipoca se safar. Soltou o bacalhau, saiu correndo pela noite e a criançada pulou sobre a posta como se fosse bola de futebol. Americano, diga-se de passagem.
O bacalhau foi fervido e refervido. (Sabe-se lá por onde o Pipoca o havia arrastado?!) Temperado com alegria, lá foi ele pra panela! Aqueles 16 olhinhos nunca tinham visto um tão perto da cozinha deles. Que ceia inacreditável teriam pela frente! Frango, bacalhau! E nada de pipoca! Iam guardar o saco de milho comprado com sacrifício para estourar na festa de ano-novo.
Perto da meia-noite, tudo pronto. Pipoca apareceu de soslaio na soleira da porta e foi recebido com grande carinho. Era o herói da noite. O Papai Noel tupiniquim! Ganhou um pratinho com umas raspinhas de bacalhau junto de pão adormecido, para dar mais substância. Ele merecia!
Mas, na hora de sentar à tosca mesa, D. Cristina estava incomodada. Era muita fartura ali à sua frente! Lembrou de seu vizinho lá do final da rua. Um rapaz jovem, que ficara viúvo, tendo três filhos para criar. Pobrezinho, pobrezinho... Mais do que ela, se aquilo fosse possível...
Não pensou duas vezes: pegou um pano de prato meio roto e envolveu a travessa plástica que acomodava o frango. Saiu pela porta afora em passos apressados e os meninos correram atrás da mãe, sem entender nada. Chegando na casa do vizinho, viu que eles tinham à mesa... pipoca. Com um grande sorriso no rosto, D. Cristina empurrou a tigela pro lado e colocou a travessa com o frango.
– Feliz Natal, Antonio. Pra você e pras suas crianças.
Deu meia-volta e aí, sim, pôde sentar-se com a filharada e saborear sua ceia farta, naquela noite de Natal inesquecível.

domingo, 24 de junho de 2007

E a Lapa foi pro brejo...

Estavam todos reunidos em volta de uma grande mesa naquele sábado à noite. Amigos de final de adolescência, início de fase adulta, todos agora beirando os 40 – ou com esta marca já ultrapassada. O motivo do reencontro era a inauguração do restaurante do Márcio, que decidiu fazer um open-doors apenas para convidados. Conversa vai, conversa bem... Choppinho vai, caipirinha de abacaxi vem... Meia-noite e meia o evento acaba. O grupo de amigos – formado em sua maioria por casais – está na porta do restaurante conversando sem parar, contando piadas, dando gargalhadas, sem querer dizer boa-noite. Beto, um dos poucos solteiros, lança:
– Gente, deixa eu ir porque ainda vou pra Lapa encontrar uma mulherzinha.
Foi a deixa para Ana, casada com Rômulo, mãe de duas filhas que estavam dormindo na casa de uma amiguinha:
– Lapa??? Tô dentro! – A liberdade era tanta, que ela até esqueceu de consultar o marido. – Gente, vambora todo mundo pra Lapa! Não vou na Lapa há anos e, na minha época, não era como agora. Meu sobrinho tá sempre lá e diz que tá bombando.
Olhos de espanto da maioria. Mulher encarando marido, marido encarando mulher. Até que Amaral, um dos maiores bebuns dessa galera, não titubeia.
– É isso aí! Vamos tomar a saideira na Lapa!
A mulher dele, Adriana, topa na hora e, por incrível que pareça, se torna a mais animada do grupo, superando até mesmo a empolgação inicial da Ana. É o famoso efeito caipirinha...
– Beto, a gente te dá uma carona – convida o Amaral.
Mas, quando todos chegam perto do carro novinho dele, surge um problema: o mecanismo que destrava o alarme emperra. Se tentarem abrir a porta, o alarme vai disparar e acabar com a paz daquela rua pacata de Botafogo. Os amigos ficam à beira do carro falando alto e rindo da situação, enquanto Amaral e Rômulo tentam consertar o alarme, até que a janela de um dos prédios se abre e de lá sai a cara amassada de uma mulher:
– Vocês estão pensando o quê? Quero dormir!!! Vão fazer bagunça em outro canto.
A turma – se achando adolescente – ri ainda mais e o jeito é todo mundo se apertar no carro velho da Ana e do Rômulo e seguir para Laranjeiras, pegar a chave reserva do alarme. A essa altura, Beto, indignado porque a mulherzinha já estava ligando para o celular dele o tempo todo, entra no primeiro ônibus rumo à Lapa. Sob protestos, claro.
O carro era velho, mas o som era bom. Tocava Barão Vermelho e todo mundo cantava alto: “Mais uma dose, é claro que eu tô a fim...”
Chegaram em Laranjeiras, pegaram a chave reserva do alarme. Rumo a Botafogo, Mila, a mulher do dono do restaurante (que só iria para a Lapa mais tarde, depois de baixar as portas do charmoso estabelecimento), começou a brochar.
– Ai, gente, amanhã o Márcio tem que acordar supercedo pra levar o João pra catequese. E o Pedro levanta às seis, não deixando ninguém dormir mais. E o Gui acaba acordando também... – começou a ladainha, narrando sua rotina com a escadinha de três pequenos filhos.
– Ih, Mila, deixa de ser chata. Uma noite só! A gente nunca mais caiu na night juntos! Aproveita que sua mãe tá tomando conta dos meninos... – disparou Ana.
– É isso mesmo! Pior somos eu e o Amaral, que ainda vamos ter que pegar a Maria Eduarda com a minha mãe antes de voltarmos pra casa – completou Adriana.
– Hahaha! Pior somos eu e o Rômulo, que, depois de tomar todas, ainda vamos dirigir até Jacarepaguá. Só de pensar já me dá preguiça – foi a vez de Ana se lamentar.
Um silêncio mortal se fez no carro. A animação começou a afrouxar...
– Gente, desisto... Vocês me deixam em casa? – Mila foi a primeira a abortar a ‘missão Lapa’.
Ana e Rômulo sucumbiram também:
– Pô, podes crer... É o maior chão até Jacarepaguá e já tá tarde pra caramba...
Adriana ficou revoltada:
– Não acredito, gente! Nós temos um sábado livre, sem crianças, não nos víamos há um tempão e agora vocês vão arregar? Vocês são um bando de velhos! O quê que custa tomar a saideira na Lapa e...
O celular dela toca, interrompendo seu discurso inflamado. O tom de voz muda, tornando-se quase melódico.
– Oi, mãe... É que o carro deu problema. Mas já estamos indo praí, tá?
Quando desliga, abaixa a cabeça e diz meio sem-graça:
– A Maria Eduarda acordou chorando... Amaral, vamos ter que voltar agora...
– Xiii... A Lapa foi pro brejo... – lamenta o maridão.
E assim os velhinhos quarentões, pais de família, rabinho entre as pernas, tomam o rumo de suas casas.
Lapa, fica pra próxima!

quinta-feira, 21 de junho de 2007

ESTÁ LANÇADA A CAMPANHA!

BLOG SEM COMENTÁRIOS, BLOG TRISTE. FAÇA UM BLOGUEIRO FELIZ!

Vestidinho estampado

No grande apartamento, os quartos abrigam pai, mãe e irmãos. Todos embriagados num sono profundo. Na sala, embriagados de prazer, corpos frenéticos se movimentam. Na penumbra, não têm medo de serem surpreendidos. Ao contrário, o tempero do êxtase é justamente o perigo iminente.
Vindos de um show com acordes ciganos, se deixaram envolver pela magia. Na saída, a surpresa: o convite dela. “Vamos lá pra casa. Todos dormem.” Maior surpresa ainda foi o sim, corajoso.
Caminharam lado a lado entre sorrisos e silêncios cúmplices, numa preliminar do que estava por vir. Entraram no apartamento escuro, que escuro permaneceu. Fecharam a porta da sala, que dava para o grande corredor com os quartos. O isolamento acústico perfeito para o amor.
Ele sentou na poltrona. Ela sentou sobre ele. Por dentro de seu vestidinho curto e estampado, solto no corpo, uma mão começou a percorrer a pele tesa, jovem, livre de qualquer amarra. E o corpo dele teso também ficou.
De súbito, ela o puxou para o chão. E o fez deitar. Ainda com o vestidinho, subiu sobre ele. E se encaixou nele. E iniciou a dança do amor. Numa cadência ainda cigana. Ousada.
Inconseqüente, sem bloqueios, ele estava cego. Só via na escuridão a silhueta do vestidinho estampado se mexendo.
Era um encontro há tempos marcado, mas cheio de desencontros. Aquela madrugada era o Big Bang de uma paixão que estava enclausurada.
E explodiu... E o vestidinho curto e estampado ainda estava lá. Nem saiu do corpo. Foi o grande cúmplice e a única testemunha de tudo.
Depois daquela noite, os encontros se tornaram cada vez mais desencontros. Até que se perderam de vez.
Já faz tempo que a pele deixou de ser tesa, o vestidinho nem cabe mais nela... Mas ainda está lá. Guardado no armário tendo um cabide como moldura. Eternizando, como obra-prima num museu, aquele momento de loucura e beleza da juventude.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

O menino e o mar

Aquele dia eu havia acordado enviesada. Não sou muito de ter insônia, muito menos de ficar deprimida. Mas a noite anterior tinha sido um tormento. Rolei muito na cama tentando pegar no sono. Minha mente estava ativa demais e não deixava meu corpo descansar. Na minha cabeça só vinham: problemas, problemas, problemas. Fazia quase cinco meses que eu estava desempregada. A falta de dinheiro e de perspectivas estava me deixando maluca. Se não fosse o apoio moral e financeiro de meu marido, acho que teria enlouquecido. Mesmo assim, mais um mês estava se acabando e, daqui a poucos dias, novas e muitas contas estariam batendo à minha porta. Por isso não conseguia dormir. Por isso só preguei os olhos alta madrugada. E ainda por cima despertei cedo. A cama não estava sendo uma boa companheira.
Meu marido saiu com nossas filhas, seguindo para a escola e, depois, para seu trabalho. Quando a porta se fechou, fecharam-se diante de mim as possibilidades do que fazer naquele dia. Não precisava correr para não chegar atrasada no trabalho. Não precisava fazer o almoço, nem arrumar a casa, porque ainda tínhamos o luxo de uma empregada. Quase voltei para a cama para ver se, dessa vez, ela me serviria de amiga e confidente. Mas pensei: que nada. Preciso de luz. Preciso de ar puro. Preciso respirar, senão minha amargura vai acabar me sufocando.
Peguei o carro e decidi ir para a praia. Dirigi até a praia mais deserta de minha cidade. Não queria ver muita gente. Sabia que, em pleno dia de semana, provavelmente só encontraria surfistas, e, mesmo assim, eles estariam no mar, bem longe de mim. Abri minha cadeira na areia fofa e fiquei lá, pensativa, olhando aquele azul infinito à minha frente. Alguns minutos depois, vi que, ao longe, uma família caminhava para perto de onde eu estava. Logo resmunguei comigo mesma. Queria ficar sozinha, lembra? Mas minha rabugice não durou muito tempo.
Aquela era uma família especial. Embora a princípio parecesse igual a todas as outras: mãe, pai, dois filhos. Um devia ter uns sete anos. O outro, uns quatro. Este menorzinho tinha um brilho diferente. Ele não parava de sorrir. Era um sorriso que ia de orelha a orelha. O sorriso mais bonito do planeta. Parecia não ligar para o fato de estar careca e magrinho, nem de possuir cicatrizes pelo corpo, na altura dos pulmões e do abdômen. Muito menos parecia se importar com o fato de ter no nariz uma daquelas sondas para a alimentação de pacientes que estão com alguma doença grave. O menino apenas sorria. Seus olhinhos vibravam, transmitindo: “O mar, a praia. Eu estou na praia!”
Fiquei quietinha olhando. Peguei um livro na bolsa e fingi que lia. Não queria importunar aquele momento tão sublime. O pai do menino começou a encher uma daquelas piscininhas plásticas, usadas por bebês. Em seguida, a mãe tirou de uma sacola algumas garrafas de água mineral e as virou na piscina. E o menino finalmente pôde tomar seu banho na praia. Não era um banho de mar, mas era o melhor que seus pais poderiam lhe oferecer. Àquela altura, meus problemas financeiros já tinham se transformado numa nuvem levada pelo vento dos meus pensamentos. Uma nuvem bem pequena, diga-se de passagem.
O irmão mais velho fazia de tudo para divertir o menino. Ia na beira da água e buscava conchinhas, ofertando ao irmão. Começou a construir um castelo de areia à beira da piscininha, parecendo querer fazer com que o irmão fosse viver naquele mundo de sonhos, como um príncipe de um reino fantástico onde criancinhas não adoecem. A mãe, então, calçou luvas de borracha nas mãozinhas frágeis do filho, para que ele também pudesse mexer na areia e construir seus próprios castelos. O menino afundava seus dedos na areia, rindo com gosto da brincadeira divertida. E eu afundava meu corpo na cadeira de praia, morrendo de vergonha da ridícula noite de insônia que havia tido.
De repente, os olhos do menino se fixaram no mar. Consegui ouvi-lo dizer: “Mamãe, eu queria muito molhar meus pés na água.” O pai e a mãe cruzaram os olhares por alguns instantes, sabendo que aquilo talvez fosse muito arriscado. Mas não disseram palavra alguma. O pai pegou o menino no colo e o conduziu até a beira do mar. Lá chegando, os quatro caminharam felizes por alguns minutos, embalados pelo vaivém das marolas lambendo seus pés. Com suas mãozinhas emborrachadas, o menino catou conchinhas e ofereceu ao irmão, retribuindo os presentes que ganhara momentos antes.
O sol estava ficando mais forte e a mãe, previdente, sacou da bolsa um guarda-chuva e protegeu seu pequeno tesouro dos raios. Nada seria motivo para aquela farra ter fim. A família ainda caminhou à beira-mar mais um pouco, agora com o menino no colo. E tiraram algumas fotos. Aquele instante mágico precisava ficar registrado não apenas no coração, mas também no papel. Quando os anos se passassem e o irmão mais velho já fosse um homem, certamente iria gostar de mostrar a seus filhos o tão adorado tio que eles não puderam conhecer. E mais do que isso: como aquele dia na praia havia sido tão prazeroso, apesar de todas as adversidades.
A família arrumou suas coisas e subiu para o calçadão. Percebi que iam se sentar numa mesinha de um quiosque para desfrutar ainda mais daquele convívio tão longe da rotina de um hospital. Eu não podia perder a oportunidade de acompanhar de perto aquela cena. Meu coração estava tão apertado e, ao mesmo tempo, tão grato por estar presenciando aquilo tudo... Era uma lição de vida para eu poder me lembrar que, no mundo, há solução para tudo. Há solução para a falta de dinheiro e para o desemprego. Mas não há solução para a falta de saúde. No entanto, estava aprendendo ali que o amor é capaz de superar a dor.
Fui até o balcão do quiosque e pedi um refrigerante. E o bebi leeeeentamente, leeeeentamente... Ouvi quando o menino disse: “Gente, queria tanto comer um peixinho assado!” E sua vontade foi feita. Em pouco tempo, lá estava o peixinho na mesa. Tão imponente quanto o pão da Santa Ceia. O menino era só sorrisos. Sua família era só sorrisos – apesar de uma leve sombra por trás do brilho de seus olhos. Reparei que o menino não comeu quase nada. Mas estava nitidamente feliz. Muito, muito feliz. Até que o escutei dizer que estava ficando cansado. A mãe retrucou: “É, já está tarde mesmo... Ainda temos que voltar ao hospital.” Imediatamente o pai se levantou e pagou a conta. Todos se levantaram radiantes como crianças num dia de domingo. E partiram, deixando para trás um rastro de luz e esperança.
E eu fiquei lá naquele balcão. De queixo caído. Uma lágrima rolou de meu olho esquerdo, estacionando sobre meu peito. Bem sobre o coração. Fiquei pensando o que os médicos daquele menino diriam quando seus pais relatassem a aventura que haviam vivido naquela manhã. Certamente os censurariam. Os chamariam de loucos, inconseqüentes, irresponsáveis. Poderiam até ser, diante dos olhos da ciência. Mas, diante dos olhos do amor, eles eram os pais mais maravilhosos que uma criança poderia ter. Pais que não esqueceram que seu filhinho, embora doente, ainda é uma criança. Pais que talvez tenham realizado o sonho do menino de rever, por uma última vez, o mar.
Pensei em quanto tempo mais aquele menino iria viver. Quem sabe ele não ficaria curado? – um rasgo de esperança cortou a minha mente. Mas pelo olhar preocupado dos pais, dava para perceber que esta era uma hipótese muito remota. Ainda assim, tive a sensação de que aquele sorriso infantil não se apagaria nunca. Dentro de mim, não se apagaria jamais. Naquela mágica manhã, aprendi que os problemas devem ser encarados com um grande sorriso no rosto. Um sorriso que vai de orelha a orelha. O sorriso mais bonito do planeta. Porque mesmo que a aparência exterior insista em mostrar que as coisas não vão nada bem, a esperança não morre. O amor não morre. E a vida sempre continua para aqueles que têm fé e forças para lutar.
Cheguei em casa completamente mudada. Uma criança e sua família haviam feito uma revolução dentro de mim. A partir daquele dia, passei a dormir como um anjo. E um dia sonhei que um anjinho careca dava um grande sorriso para mim. Acordei fortalecida e certa de que a vida é justa e bela. Embora nem sempre pareça.
Fiz este conto em homenagem a Victor Fernandes José, filho da minha amiga Fernanda Fernandes – fé duas vezes no nome! –, que foi chamado de volta à espiritualidade bem cedo... E, com ele, acabei arrebatando o 4º lugar no concurso de contos e crônicas promovido pela Edições AG (o prêmio é a participação em uma coletânea com os vencedores, que será lançada em agosto).

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Cabeça de mulher

Aquele dia, ela havia acordado diferente. Seu sol interior parecia brilhar mais forte. Saltou da cama animada, não sabia bem o porquê. Foi direto ao banheiro e, ao se limpar, percebeu no papel higiênico algo que vinha perseguindo há vários meses. Algo que, neste momento de sua vida, era mais valioso do que ouro. Um muco. Um simples muco. Transparente, elástico, inodoro. Era o tal muco que sua ginecologista havia lhe alertado: “Quando o vir, é sinal de que está fértil.”
Um sorriso de orelha a orelha se estampou em seu rosto. É hoje! Pena que o marido já havia saído para trabalhar, senão seria ali e agora. Sem demora! Sem espera! Ela estava cansada de esperar... Casada já havia cinco anos, depois de um longo namoro de sete, seu relógio biológico tocava insistentemente exigindo que aquele ventre gerasse uma criança. Só que as coisas não eram tão fáceis assim. Se dependesse só dela, tudo bem. Mas o marido tinha sempre uma desculpa na ponta da língua. “Vamos curtir mais a vida de casados.” “Vamos esperar a gente se estabilizar.” “Vamos primeiro fazer uma viagem à Europa.” E o tempo passando. E o relógio cobrando.
Aquele dia tinha tudo para ser muito especial. Foi à aula de ioga, acalmar sua mente diante de tamanha expectativa. Foi à academia, esculpir aquele corpinho que já estava começando a querer perder as formas. Foi à igreja, pedir a Nossa Senhora e a todos os santos que dessem uma forcinha para o que estava para acontecer logo mais. E como toda boa mulher que se preze, no final da tarde deu um pulo no shopping. Comprar uma lingerie nova poderia ser um bom tempero.
O fato é que, após tanto tempo juntos, os tambores da paixão já não rufavam como antigamente. Mas algo incrível acontecia naquele dia: ela estava tomada por um furor adolescente. Seu corpo ardia. Se alguém duvida que a libido da mulher aumenta durante o período fértil, como alguns sexólogos costumam dizer, lá estava ela para provar que é a mais pura verdade. E, assim, fez algo que não fazia há muito tempo: se preparou para ele, para aquele homem a quem nem precisava conquistar mais.
No início da noite, tomou um daqueles banhos demorados. Mandou vibrações de amor para cada parte de seu corpo. Passou creme esfoliante. Usou o sabonete líquido mais cheiroso que tinha. Cuidou da depilação. Acariciou todo seu corpo enquanto aplicava o hidratante. E tratou de colocar gotas de seu melhor perfume em lugares estratégicos. Deixou os cabelos soltos e bem escovados, em lugar do rabo de cavalo sem graça que insistia em usar em casa todas as noites. Foi para a sala e não ousou chegar perto da tevê. Acendeu um incenso, ligou o som. No ar, misturavam-se o aroma do almíscar e notas musicais românticas. Naquela noite, ela estava se amando. E estava louca para amar e ser amada.
Finalmente, ele chegou. Foi recebido com um grande sorriso. Daqueles tão radiantes que não via faz tempo. Ela o abraçou e o beijou e deu a entender que queria algo mais. Ele pediu apenas um tempo para tomar um banho e comer alguma coisa. “Está bem.” Disse ela. “Mas não demore.” Aquela impaciência para se entregar estava dominando sua alma. Seu corpo todo latejava. Sentou no sofá e mudava de posição incessantemente. Difícil relaxar, sabendo que em breve estaria próxima de realizar seu grande sonho.
Cansada de esperar, se antecipou e seguiu para a cama. Passados uns 15 ou vinte minutos – que pareceram uma eternidade –, ele se juntou a ela no leito onde há mais de 1.800 dias vinham se deitando, sem que nada de sobrenatural acontecesse. Mas aquela noite tinha tudo para ser mágica.
– Te amo muito. Amo estar do seu lado – disse ele, surpreendendo-a, enquanto a abraçava docemente.
– Mas você dorme do meu lado todas as noites! – brincou ela.
– Mas eu não te sinto como estou te sentindo agora...
Tinha magia no ar! Era inegável e inexplicável. Ela ficou ainda mais excitada ao ver que ele, daquela vez, estava diferente também. Mais carinhoso, mais presente. O que estaria acontecendo? Só podia mesmo ser o Universo conspirando a seu favor, para que a concepção fosse cercada de uma aura toda especial.
Entregaram-se à paixão – sim, à paixão! – como nunca. Viveram momentos deliciosos e, ao mesmo tempo, ternos. Pareciam dois namorados se descobrindo. Mas eram velhos conhecidos na cama, que naquele dia desvendavam uma nova faceta. Ao final do último suspiro, ela não cabia em si de tanto contentamento. Ele, cansado, não demorou muito a afundar nos lençóis. Ela não. Ainda ficou vários e vários minutos sonhando de olhos abertos.
No dia seguinte, flutuava. Sentia-se diferente. Caminhando pela rua, surpreendeu-se ao ver que levara a mão à barriga. Tirou rapidamente, com um risinho fugidio, pensando: “Cedo demais.” Ao passar em frente da confeitaria que sempre fez parte de seu trajeto, mas nunca chamou sua atenção, aguou quando viu na vitrine uma bandeja de bombas de chocolate. Apesar da eterna dieta, entrou e comeu duas. Seguiu para a academia como era de costume. Só que, ao chegar lá, surpreendeu a recepcionista: “Vim trancar a minha matrícula. Daqui a três meses eu volto. E para fazer apenas hidroginástica.” Foi embora rindo sozinha, sem dar explicações.
Uma semana se passou. Ela subiu na balança e viu que o ponteiro caminhara um quilo adiante. Nem se importou com isso. Estava feliz demais ao constatar que seu corpo ganhava formas novas. Entrou no banho e deixou a água quente correr por sua pele, enquanto passava a mão por seu ventre e seus seios. Nossa, de repente percebeu o quanto eles estavam inchados! E um pouco doloridos. Um êxtase percorreu sua espinha. Era mais um sinal de que tudo estava dando certo.
Duas semanas se passaram. Ela foi ao shopping, decidida a já começar os primeiros preparativos para o enxoval do bebê. A cada vitrine que fitava, se enternecia diante de tanta graciosidade. Roupinhas tão pequenas e tão cheias de significado. Acabou optando por comprar nada. Esperaria o resultado positivo para então surpreender o marido com o exame, embalado junto a um sapatinho de bebê. Seguiu para a Praça de Alimentação, para alimentar aquele apetite que não parava de crescer. Lá, se enterneceu ao ver uma mãe passeando com seu filho no carrinho. E encheu os olhos de lágrimas ao contemplar uma outra oferecendo o seio. Estava com as emoções à flor da pele.
No dia provável de sua menstruação descer, não veio. Passaram-se mais um, mais dois, mais três dias. E nada. Enquanto sua empregada fritava um bife na cozinha, o cheiro que invadiu a sala pareceu fazê-la querer vomitar. Em vez de achar a situação incômoda, recebeu-a de bom grado. Se grávidas enjoam, ela também queria enjoar. Logo depois do almoço, aproveitou para dormir a tarde toda, porque é assim que as mulheres que estão esperando bebê fazem.
Acordou sentindo-se estranha. Diferente. Engraçado... Seu sol interior parecia não brilhar mais. Saltou da cama assustada, sabendo bem o porquê. Foi direto ao banheiro e, ao se limpar, percebeu no papel higiênico algo de que vinha fugindo há vários meses. Algo que, neste momento de sua vida, era mais execrável do que rato morto à beira da calçada. Sangue. Uma farta mancha de sangue. Vermelha, escura, com cheiro forte. O sorriso que a acompanhava há quase três semanas se esvaiu. Assim como suas esperanças.
Ainda ali sentada, chorou, xingou, blasfemou. Por quê? Por quê? Era só o que se passava em sua cabeça de mulher. Todos aqueles sintomas nada mais eram do que sinais pré-menstruais. Mas seus olhos só enxergavam o que queriam ver.
Levantou-se, enxugou as lágrimas. Preparou-se para mais um mês pela frente. Desistir, nunca. Isso também faz parte da cabeça de mulher.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Meninas casamenteiras

Do alto dos nossos 12 anos, eu e minha melhor amiga, Elisa, tínhamos imensa curiosidade em saber com quem iríamos casar. Faltava muito, era certo. Mas esse assunto não saía de nossas cabeças. Ainda mais ao se aproximar o dia de Santo Antonio, o santo casamenteiro. No ano anterior, já havíamos quebrado ovo dentro de copo d’água e até fincado facão em pé de bananeira – sem obter a tão ansiada resposta com clareza. Agora, para desvendar o mistério, minha amiga me apresentou um plano infalível:
– Ana, li numa revista uma simpatia ótima! No dia de Santo Antonio, é preciso distribuir 13 moedas, cada uma para um menino. No último, basta perguntar o nome dele. Este vai ser o nome do homem com quem a mulher vai se casar!
– Caramba, demais! Acho melhor, então, a gente dar essas moedas diante da igreja de Santo Antonio, para não ter chances de erro!
Assim, no dia 13 de junho, partimos para nossa aventura. Com os bolsos cheios de moedas, chegamos ao Largo da Carioca, grande praça do Centro da cidade que reúne engravatados, artistas de rua, pedintes e gente de todo o tipo. É lá que, no alto de um morro, se situa a tal igreja.
– Bem, a gente não precisa subir essa escadaria, né? – retrucou Elisa, preguiçosa.
– Acho que não. Daqui debaixo a gente já recebe as bênçãos de Santo Antonio.
Quando metemos as mãos nos bolsos e começamos a distribuir as moedas, que susto! De repente, se formou à nossa volta um aglomerado de meninos de rua, ávidos para garantir um trocado. Brotaram de todos os cantos da praça, como se estivessem entocados à espreita de alguma alma caridosa que lhes desse um dinheirinho ou de alguma devota distraída com sua bolsa. No caso, nós éramos as almas caridosas...
Meio que apavoradas – sei lá se iam nos confundir com alguma devota distraída! –, eu e Elisa distribuímos as ditas-cujas com uma rapidez que não estava no script de nossa simpatia. Por pouco, quase que não conseguimos perguntar o nome do 13º menino. Mas, numa manobra mais ousada, agarramos os garotos pelo braço e fizemos a pergunta que não queria calar:
– Qual o seu nome? – soltamos em uníssono.
– Wendell – respondeu um.
– Valdisnei – falou o outro a Elisa.
Nossos olhares se cruzaram, como a dizer: “Ninguém merece!”
Deixamos a praça de cabeça baixa, sem muitas palavras, arrasadas com o destino que Santo Antonio nos reservava.

Os anos se passaram. Eu me casei com um Rômulo. A Elisa já está no seu segundo casamento: primeiro, um André; agora, um Rubens. Acho que Santo Antonio estava dormindo de touca aquele dia... Ou, então, lá do céu, tirou a maior onda com a nossa cara!

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Precisei saber viver

Toda vez que eu atravessava a passarela de pedestres da Avenida Brasil para pegar o ônibus de volta para casa após um estafante dia de trabalho, aquela música ecoava em minha mente: “Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco ou morrer na solidão...” Naquela época, na voz dos Titãs, ela era tema do casal Lucinha e Carlão de Pecado Capital. Seus acordes vibravam fortes no meu coração, principalmente na parte que dizia: “Toda pedra no caminho, você pode retirar...”
Eu precisava retirar as pedras que estavam atravancando minha vida naquele ano de 1998. A empresa que trabalhara durante anos havia falido e, no desespero, aceitei um emprego numa outra localizada num bairro horroroso, ocupando uma função aquém de minhas qualidades. Sem dinheiro, tive que vender meu carro. O jeito era encarar ônibus lotado para ir e vir, e, na volta, era obrigada a atravessar a assustadora passarela da Avenida Brasil, onde sempre cruzava com alguns sujeitos mal encarados. E ficava tonta ao olhar para baixo, com os veículos em alta velocidade deixando um rastro de gás carbônico e de barulho ensandecedor. Eu me sentia pequenininha... Só o que me fazia crescer era cantar dentro de mim a música do Roberto: “É preciso saber viver! É preciso saber viver!”
Tinha que acreditar que aquela fase ia passar. Não podia me revoltar! Tinha que acreditar que, assim como a Lucinha da novela, eu ia dar minha volta por cima profissional, ia vencer! E venci... Naquele período de idas e vindas sobre a passarela da Brasil, fui recompondo minha auto-estima pouco a pouco. Me enchi de fé e me abri para novas possibilidades. Alguns meses depois, pude retirar o espinho da flor que insistia em me arranhar: fui chamada para ser sócia de uma ex-colega da empresa falida, que estava montando seu próprio negócio. Não tive medo. Escolhi o bem, deixei o que me fazia mal para trás. E hoje escrevo com a certeza de que fiz a opção certa: nossa empresa segue de vento em popa. Não era preciso saber viver? Pois é, acho que aprendi.
(Escrevi este texto para participar de uma promoção do O Globo que daria como prêmio dois ingressos para o show do Roberto Carlos. Fiz isso pela minha sogra – que é louca por ele – e ganhei! O tema era: "Que lembranças a música do Roberto Carlos traz pra você?" Daí inventei esta história.)

sábado, 14 de abril de 2007

Crônica de uma música floydiana

Eram 6 e pouca da tarde, e, mais uma vez, estava eu preso no engarrafamento de volta para casa. Para completar, uma chuva forte resolveu cair, atrapalhando ainda mais o trânsito. O rádio do carro estava ligado, mas confesso que nem estava ouvindo as músicas, porque os problemas daquele dia estressante de trabalho ainda engarrafavam a minha mente. De repente, aqueles acordes de guitarra invadiram os meus pensamentos e o meu coração ficou apertado. Na mesma hora, voltei dez anos no tempo.
Estava na casa de uns amigos, bebericando vinho e cantando ao som do violão do Marreco, meu grande amigo Marreco. Eu não sabia tocar qualquer instrumento, mas cantar era comigo mesmo. E sempre que nos reuníamos com a galera, essa música não faltava em nossa rodinha: How I wish you were here. Marreco arrebentava na viola e eu, no vocal. Muitas vezes fazíamos um dueto – porque eu nunca fui muito bom de inglês – e nossos amigos ficavam babando.
Os sons de Floyd povoaram a minha adolescência e, até hoje, são muito bem-vindos. Como naquele exato momento, no engarrafamento. A emoção tomou conta do tédio e uma lágrima sentida rolou pelo meu rosto. Marreco, meu grande amigo Marreco, como eu queria que você estivesse comigo aqui! Assim como diz a canção... Mas isso era impossível, porque numa curva, anos atrás, sua moto tombou e levou junto os seus sonhos. Agora estava eu ali, chorando tua ausência, confundindo minhas lágrimas com a chuva que caía lá fora.
Decidi, então, cantar bem forte a nossa música, como se fosse você quem estivesse dedilhando o violão. Cantei, vibrei, espantei a tristeza. Sorri, lembrando de você. Tive, então, a nítida sensação de que você estava do meu lado. Pensei: “que loucura, impossível...”. Nem reparei que a chuva tinha passado e, no lugar dela, um arco-íris cruzou o céu. É, eu desejei que você estivesse ali... E aquelas cores que afastaram o cinza me deram a certeza de que você esteve. Como o prisma na capa do CD do Pink Floyd. E o seu som ecoou fundo no meu coração...
(Escrevi esta crônica há uns seis ou sete anos, para participar de um concurso do jornal O Globo sobre o Pink Floyd. Fiquei entre os vencedores e ganhei alguns prêmios, como CD, casaco, etc. Escrevi como se fosse meu marido, Rômulo. Porque, de fato, ele perdeu um amigo chamado Marreco e, sempre que ele escuta How I Wish You Were Here, lembra do amigo.)

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Atendimento vip

Cheguei no hospital e vi que a situação era preta. Estava lotado! Mas, num up-grade evolutivo do atendimento, eles dispuseram grandes bancos para a população se sentar, os quais funcionavam como verdadeiras filas. Ao invés do tradicional “um passinho à frente, por favor”, o que se via era um arrastar de bundas cada vez que alguém entrava para a sala do médico. Me acomodei no último lugar do banco e logo fui espremida pelo grande número de pessoas que não paravam de chegar. Sinceramente, não sei o que era pior: ficar ali sentada, praticamente sem circulação sangüínea e movimento de braços e pernas, ou me manter em pé para, pelo menos, dar uma esticadinha no corpo.
Minhas crianças ficaram brincando soltas à frente da fila-banco. Até que, muito arrastar de bunda depois, chegou a minha vez de entrar no consultório.
– Vamos lá, gente – convoquei minha filharada.
E eram muitos filhos, que se apertaram dentro da salinha já apertada.
Quando olhei para o médico, mal acreditei. Ele era a cara do Dalton Vigh, da novela das seis. Aquele que faz um empresário cínico que, para todos é um santo, mas em casa mete a porrada na mulher e manda matar Deus e o mundo! Fiquei assustada quando ele bradou, secamente:
– O que elas têm?
Relatei que meus filhos estavam com algum problema de pele. Catapora talvez.
Com a maior cara de nojo, ele nem tocou nas crianças. Apenas as olhou de soslaio e disse para eu passar tais e tais remédios nelas.
– Ô, Doutor, o senhor tá falando muito rápido. Não poderia escrever isso no papel?
Ao me responder entredentes que o papel do hospital havia acabado, ele, mais uma vez com um ar de repugnância, deu um sopro sobre minhas crianças. E, assim como mágica, foi criada sobre elas uma camada finíssima de gaze, na qual ali mesmo ele escreveu a receita. Como se estivesse tirando cola que seca na palma da mão, fui destacando cuidadosamente a receita da pele delas e a coloquei dentro da bolsa. Saí do consultório cabisbaixa com meus filhos, ainda mais depois de ter agradecido ao atendimento e não ter ouvido sequer um “de nada” do doutor com cara de vilão de novela.
Foi então que despertei. Olhei ao redor e vi que estava na minha caminha gostosa, quentinha e confortável. Lembrei-me que só tinha duas filhas e que, graças a Deus, tinha plano de saúde. Se eu precisasse de atendimento médico, bastaria ir ao hospital mais próximo, sem enfrentar filas e sem ser tratada com despeito.
Fiquei vários minutos deitada na cama com a lembrança deste sonho me incomodando. O chato é saber que esse sonho, na verdade, é a mais pura realidade...

Sexta-feira 13 cheia de sorte

Ela chegou sorrateiramente em minha casa. Olhou tudo à sua volta e não disse nada. Andou pra lá e pra cá, sem estranhar a presença de uma saltitante bolinha de pêlos encaracolados. E depois se aninhou em meu colo, suspirou e fechou os olhinhos à medida que meus dedos acariciavam seu corpinho frágil.
O nariz e as orelhas estavam machucados. Ela havia sofrido antes de bater à minha porta. A violência anda à espreita nas ruas de quem tem puro o coração e não sabe se defender. Mas aqui ela encontrou um lar. E gostou.
Na folhinha marcava "sexta-feira 13". Poderia ser sinal de mau agouro... Mas como se ela era branca como a neve, olhos azuis como o céu? Só podia ser um golpe de sorte que o destino me enviava. Um talismã! Ganhou o nome de Marie. Meiga e bela como todas as Marias.
Hoje, adotei a Marie. Uma gata que vivia no Campo de Santana e foi capturada pela "anja" Dra. Andréia Lambert, que resgata animaizinhos abandonados, cuida deles e batalha para encontrar donos que venham a amar esses bichinhos. Foi um outro anjo quem me trouxe a fofa: minha amiga Martha Lavenère, que Deus a abençoe! Mãe da Pinga (outra gatinha adotada) e – justiça seja feita – madrinha da Marie. Agora, Marie está feliz ao lado da irmãzinha Amy, minha poodle, da mãe Carina (minha filha caçula), da tia Milana e dos avós (eu e Rômulo – quem eu espero que se apaixone igualmente por esse denguinho de quatro patas). Obrigada, São Francisco de Assis, por ter me mandado a Marie. E espero que o sr. esteja cuidando do meu Jim Morrison, onde quer que ele esteja...

quinta-feira, 12 de abril de 2007

AMIGOS: parte especial da minha coleção

Gente, será que ainda dá tempo de me redimir? Escrevi "Colecionadora de vitórias" há dois anos – pois é... já estou com 38! Este texto saiu facilmente de dentro de mim como um desabafo, após uma discussão que tive com meu marido. A tônica do estresse conjugal era o fato de eu achar que ele não estava correndo atrás de certas coisas. Rômulo – sim, este é o nome do meu amor! – andava tomado pela síndrome do Zeca Pagodinho: "Deixa a vida me levar, vida leva eu..."
Foi por conta disso que corri pro papel (digo, pro teclado) para colocar pra fora todas minhas vitórias e assim, quem sabe, ver se dava uma boa sacudida nele. E escrevi tantas coisas, mas tantas coisas... Que acabei esquecendo de uma parte importantíssima da minha coleção de vitórias: meus amigos. Parte esta que não pára de crescer, diga-se de passagem.
Quem chamou minha atenção para tamanha gafe – sutilmente, de forma carinhosa até – foi minha grande amiga Pat Dantas (foto), alma gêmea, carne e unha, que entrou na minha vida quando éramos estagiárias da revista Desfile, e não saiu mais dela. Como esquecer de falar dessa gente que forma a base do meu dia-a-dia tanto quanto minha própria família?
Sempre tive muita facilidade para fazer amigos. Desde criancinha, encantava e era encantada por pessoas que falavam a minha língua, que tinham a mesma sintonia que a minha. E mesmo aquelas pessoas que falavam outras línguas e não tinham a mesma sintonia que a minha acabavam se tornando minhas amigas, porque sou muito insistente. Em meu coração, sempre há espaço para mais um.
Qual graça teria me sentar num barzinho e tomar um chope com a cadeira vazia? Qual graça teria escrever um blog e não contar com os comentários – ainda que suspeitíssimos – de gente que me quer tão bem? Qual graça teria levar a vida sem estas pessoas que me animam, me confortam, me impulsionam?
É por isso, meus amigos, que vocês deixam minha caixinha de vitórias a cada dia mais pesada. Sou loucamente apaixonada por estes queridos companheiros de jornada.
AMO VOCÊS!

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Colecionadora de vitórias

Sim, eu sou uma vitoriosa. Ao longo da minha vida, venho acumulando um êxito atrás do outro. Pouco me importa se, em meio a cada um deles, houve derrotas. Elas apenas me fortalecem para seguir adiante.
Antes mesmo de nascer, coloquei dentro da minha caixinha de vitórias a primeira de minha coleção. Minha mãe estava grávida de mim e contraiu rubéola. O médico pediu que ela interrompesse a gravidez, mas ela teimou que ia ter aquela criança não importava como ela viesse. No ventre, devo ter batido palminhas em comemoração! Quando nasci, vitória número 2: eu era um bebê perfeito. Quase perfeito. Nasci com um probleminha no baço, o qual o médico avisou ao meu pai: “Se essa menina viver até os sete anos, desse problema ela não morre mais.” E quem disse “vitória número 3”, bingo! Passei dos 7, dos 17, dos 27 e, se Deus quiser, completo 37 no ano que vem!
Embora não tenha contabilizado, uma grande vitória em minha vida foi ter nascido num lar amoroso, filha de uma mãe dedicada e de um pai nem tanto (mas um pai que se tornou meu grande amigo nos últimos anos da vida dele), neta de avós simplesmente maravilhosos, irmã de pessoas incríveis, mesmo com seus (muitos) problemas. Morava numa casa grande, num bairro ótimo. Tive babá, tive cachorro, tive (muitos) brinquedos. Freqüentei boas escolas, freqüentei colônia de férias, freqüentei cursos de línguas, de balé e de esportes. Cheguei à faculdade. Consegui trabalho na minha área. Viu quantas vitórias?
Acredito que a maior delas tenha sido formar a minha família. Fui superhiperultravitoriosa ao encontrar alguém como meu marido, após ter vivido sete anos com alguém que só me puxou para baixo e de ter experimentado algumas aventuras passageiras. Um homem bom, generoso, bonito, alegre, amigo, tolerante, inteligente, talentoso... Um homem que não teve medo de começar a vida ao meu lado do zero. Do zero mesmo, porque ambos estavam desempregados e só tinham um teto e um colchonete para passar as duas primeiras semanas da vida de casado. Fui vitoriosa quando compramos o fogão, quando ganhamos a máquina de lavar e a geladeira, quando adquirimos o nosso saudoso futom (ai, que saudades dele!), quando um amigo nos emprestou a tevê dele por seis meses e uma amiga, o som dela por mais tempo ainda. Vitórias atrás de vitórias... E elas aconteciam porque, nos momentos mais difíceis, nosso amor e nossa união falavam mais alto e criavam um campo fértil para que novas vitórias se estabelecessem.
Daí vieram o ápice das minhas vitórias até agora: Milana e Carina. Acho que na categoria “vitória” os filhos deveriam ser classificados como hors-concours. Gente, não há nada melhor do que filhos. Não há bênção maior, não há honra maior do que cuidar de um ser e torná-lo um homem de bem. Não é à toa que quero ter mais um filho (gerado ou adotado), para aumentar ainda mais minha caixinha de vitórias.
Outro filho que tive foi o livro que pude publicar. O dia do lançamento me trouxe tanta felicidade, semelhante ao nascimento das minhas filhas. Você pode achar fútil a comparação. Mas, afinal de contas, não é escritor e talvez nunca consiga entender o que estou dizendo. Somente quem tem o sonho de viver dos livros pode me entender... Por isso, essa também foi uma vitória muito comemorada. No quesito livros, então, quero escrever mais uns dez, vinte, trinta... Quantos forem possíveis. Aí está a vantagem dos livros em relação aos filhos: dá para ter uma penca! Mas, na minha vida, livros e filhos têm que andar juntos. Senão o sabor da vitória perde o gosto...
Outras vitórias na minha vida se encontram na minha fé, na minha religiosidade, no meu encontro com pessoas do bem, no meu contato com pessoas necessitadas, no meu esforço pelo aprimoramento moral, em tudo o que diz respeito à minha evolução espiritual. Nesse campo das vitórias, posso ter derrapado muitas vezes. E vou derrapar outras tantas. Mas é um caminho sem volta. É um caminho rumo à luz. E eu quero conquistá-la. Essa vai ser uma vitória que vai fazer a minha caixinha transbordar...
Como já deixei subentendido, tenho apenas 36 anos. E um mundo de vitórias a serem conquistadas pela frente. Quero comprar minha casa, quero viajar muito, quero ter o companheirismo do meu marido de volta (em corpo físico, não apenas no mental e no emocional – quero jantar com ele e depois assistir ao Jornal Nacional de mãos dadas no sofá, tendo nossos filhos brincando aos nossos pés), quero comprar meu sítio (e mais tarde morar nele), quero lançar meus livros e ter mais um filho (sei que já disse isso, mas vale a pena reforçar a idéia!), quero ajudar muita gente, quero ganhar muito dinheiro (sim, eu quero. Aceito essa prova de bom grado, tá, Deus?), quero ______, quero _______, quero ________, quero ________.
À medida que os anos passarem, vou preenchendo essas lacunas dos novos quereres que aparecerão. Porque a vida é feita de ciclos e, a cada volta, vislumbramos uma paisagem nova que puxa algo diferente de dentro de nosso peito. E daí as vontades mudam, novos objetivos se colocam à nossa frente. E ai de quem não estabelecer metas e não correr atrás delas! A vida passa e deixa na boca um gostinho de quero mais. Só que não vai dar mais tempo... As metas são o caminho que nos leva às pequenas vitórias do dia-a-dia.
O meu grand finale acontecerá quando, ao fechar dos olhos para a eternidade, perceber que a minha caixinha de vitórias se encontra abarrotada, e a de derrotas... Bem, as derrotas não chegaram a ganhar uma caixinha só para elas. Serviram apenas como aprendizado. Então, se foram aprendizado, também são vitórias, não é mesmo?