sexta-feira, 6 de março de 2009

Um ano sem Marthinha


O telefone tocou e, poucos segundos depois, o chão se abriu sob meus pés. Em seguida, arrepios e mais arrepios percorreram o meu corpo. Era como se ela estivesse ali ao meu lado, me amparando no instante em que eu recebia a notícia. O choro não veio na hora. O choque foi tamanho que estancou minhas lágrimas.
O que você faria se descobrisse que uma grande amiga sua, parceira de tantos momentos, se despede da vida aos 30 e poucos anos? Sem dar nenhum sinal de que isso estava prestes a acontecer, para que você se preparasse... O que você faria se visse os sonhos de alguém que você ama muito serem interrompidos por conta de um coágulo que migra pelas suas veias até entupir sua respiração? Assim, do nada...
Há um ano tive que enfrentar essa situação e não foi nada agradável. Minha amiga Martha Lavenère – uma das pessoas mais doces, prestativas, engraçadas, solidárias, companheiras, agregadoras que eu já conheci... – fez a passagem e nos deixou aqui, boquiabertos. Tenho certeza de que ela, em sã consciência, jamais planejaria fazer uma coisa dessas com seus amigos. Logo ela, que movia céus e terras para nos ver sempre felizes. Não, esse não foi um plano da Marthinha. Foi um plano de Deus. E, quanto a isso, só temos que acatar os seus desígnios e saber que, se aconteceu, é porque foi o melhor para ela dentro de um contexto que está muito longe da nossa compreensão.
Ainda assim, foi um dos momentos mais tristes da minha vida. Mas, para sofrer menos, fiz o contrário do que Vinícius diz em seu poema. Do pranto, fiz o riso. Não choro mais, apenas sorrio. Cada vez que penso nela, lembro dos bons momentos. Chego a dar gargalhadas lembrando das nossas bobeiras juntas. E quando me sinto desesperançada, me recordo de suas frases de incentivo me valorizando, me fazendo enxergar o meu verdadeiro potencial.
Às vezes sonho com a Marthinha... O último foi na noite do meu aniversário, na semana passada. Virei-me para ela e disse: “Você não está me devendo nada, não?” E ela, então, me dava um grande abraço: “Claro! Feliz aniversário!” Hoje, amiga, sou eu quem te deseja feliz aniversário. Sim, porque acredito que, agora, dia 6 de março é o dia do seu renascimento. Você renasceu para o mundo espiritual, que, a meu ver, é o nosso lugar de origem e de destino. E, quando você voltou praí, deve ter sido recebida em festa, por conta do tanto de coisa boa que fez aqui nos seus poucos anos de vida.
Sabe, amiga, talvez você tenha até se revoltado por ter ido tão cedo. Mas, veja bem, num dos últimos e-mails que nós trocamos, você se queixou de que não estava fazendo todo o bem pelos outros quanto gostaria de fazer. Ora bolas, Martha! Claro que estava! Senão, você ainda estaria aqui com a gente. Sua missão na Terra havia chegado ao fim. Uma missão bem-sucedida, com certeza! Bom é saber que você continua ajudando a todos nós daí mesmo, onde se encontra, e ainda com mais força! Afinal, pertinho de Deus fica mais fácil pedir pela gente, não é?
Apenas te peço que não se preocupe excessivamente com seus amigos e amores que ficaram... Nós aqui vamos tocando nossas vidinhas, enfrentando nossos desafios, curtindo nossas alegrias e aprendendo com nossas tristezas e decepções. Quanto a você, bela, cuide-se bem por aí. Lembre-se do seu velho ditado: tudo flui, tudo flui, tudo flui...
Para nós, há um ano, tudo está fluindo...

Beijos com amor, minha querida! Nunca se esqueça que o amor não morre nunca e permanece nos unindo!

PS: Sua afilhada Marie te manda um beijo, um miado e uma lambida!

segunda-feira, 2 de março de 2009

Fotos da vida

Era apenas uma foto. Em preto e branco. Amarelada. Beiradas gastas pelo tempo, passada de mão em mão. Não havia álbum luxuoso para guardá-la. Nem álbum simples. Ficava escondida entre as páginas de um velho livro. Nela, duas crianças. Um bebê gordinho, lindo. Mas não vestia roupas fofas como qualquer bebê. Sequer fraldas tinha, muito menos cueiro. Bumbum sentado direto num chão de terra batida. No rosto, um grande sorriso alheio a tudo.

Ao lado dele, um menino de uns três anos. Com shortinho de malha simples e uma camisa na altura do umbigo, nitidamente rota. Já devia ter passado por muitos outros corpos de criança antes de chegar àquele. Estava de pé – pés no chão –, ao lado do irmãozinho como um guardião. Menino bonito! Cabelos alvos lisos, perninhas ligeiramente tortas... Seus lábios não sorriam. Seus olhos falavam por ele. Eram fundos, escuros. Escondiam ali segredos que só uma infância difícil pode saber. Havia um ar de maturidade, num corpinho de pouco mais de um metro.

E lá estava ela com aquela foto nas mãos. Mãos trêmulas. Uma lágrima rolou e quase caiu sobre o papel amarelado. Numa manobra rápida, ela evitou estragar ainda mais a envelhecida fotografia. Passou os dedos sobre o rosto para estancar qualquer outra emoção fortuita que ousasse sair. Sentiu sua pele tão amarrotada quanto aquela foto. Que passado era aquele, tão distante, que abrigava duas belas crianças numa pobreza tão doída?

Era o passado dela. De uma mãe que deu à luz não dois, mas sete filhos. Apenas os meninos mais novos haviam sido clicados por um vizinho, que depois lhe ofertou o fragmento daquele momento cristalizado em papel. E ela o guardava como relíquia protegida entre as páginas daquele livro sagrado, que permanecia sobre sua penteadeira em meio a alguns frascos de perfume e uma caixa com poucas jóias. Ela não era muito de jóias. Suas jóias mais preciosas estavam na sala, à sua espera.

Fechou o livro, olhou-se no espelho, retocou o batom cor de boca, ajeitou os fios brancos e levantou-se. De pé, passou as mãos sobre o corpo para assentar ainda mais o vestido de corte simples, mas elegante, que usava. Aquele era um dia especial e queria se sentir bem. Oitenta anos fazia... E a foto amarelada já devia acompanhá-la há quase sessenta. Por isso, não poderia ir para a sala encontrar seus convidados sem antes olhar a velha companheira que não a deixava esquecer quem ela era. Quem ela havia sido.

Mulher de vida dura, mulher batalhadora. Criou seus filhos praticamente sozinha, porque era como se companheiro não tivesse. Até que, um dia, realmente não o teve mais. Foi embora com outra. Pouca diferença fez. Trabalhava o dia inteiro, à noite ia à escola tentar aprender a ler, escrever e fazer conta. Conseguiu. Sua escadinha de filhos segurava a barra em casa. O mais velho tomava conta do mais novo, que tomava conta do mais novo, que tomava conta do mais novo... No fundo, todos os irmãos olhavam uns aos outros enquanto ela lutava pelo arroz e feijão de cada dia.

Parentes vendo aquilo quiseram dividir seus filhos. Cada um criaria um. Todos ouviram não como resposta. E ela continuou tocando sua vida. Quando se deu conta, os meninos já eram homens, as meninas já eram mulheres. E mais do que homens e mulheres, eram pessoas com força, garra, determinação. Haviam herdado da mãe. Mergulharam na vida sem medo e prosperaram. Formaram suas próprias famílias e a encheram de netinhos com fraldas descartáveis, roupas de grife e berços de ouro.

E todos a esperavam na sala. Quando ela saiu do quarto da boa casa em que hoje morava, foi recebida pela melodia do Parabéns entoada por corações cheios de amor e gratidão. Seus filhos, sua família! Sua razão de ainda estar viva para saborear mais este momento. Lá para trás ficaram os dias difíceis, em que aniversários, quando comemorados, eram regados a bolo barato e groselha. A mesa agora era farta. Mas isso era o que menos importava naquela hora.

O neto mais velho tratou logo de armar um tripé no meio da sala, no qual atarraxou uma moderna máquina digital. Ajeitou toda a família por trás da grande mesa. Ela ao meio. Apertou um botão, correu para unir-se aos outros e, cinco segundos depois, o flash espocou eternizando aquela cena. Inúmeros sorrisos, inclusive o dela.

Dois dias depois, o neto voltou com um presente nas mãos. Era um porta-retrato com moldura toda trabalhada, um luxo só! Por trás do vidro, a foto da família toda reunida, impressa em papel brilhante. Mas quem brilhava mais eram os olhos dela.

Quando o rapaz se foi, ela correu para o seu quarto, sentou-se na penteadeira e arrancou a foto de dentro do porta-retrato. Pegou seu antigo livro, abriu na página em que se encontrava a foto amarelada e, por trás dessa, acomodou a atual. Antes de fechá-lo, não resistiu e acariciou com seus dedos frágeis a foto de seus pobres meninos. Agora, esboçou um leve sorriso.