Ela aparentava muito mais idade do que realmente tinha. Andava um pouco curvada, retorcida por suas tristezas. Cabelos encanecendo cada vez mais rápido, mãos com veias saltadas, tez querendo vincar como folha de papel crepom. Há exatos 3 anos e 5 meses cumpria um ritual. Todos os domingos tomava um ônibus, depois pegava uma kombi pirata e descia diante daqueles muros altos, cobertos por arames farpados. Passava pela primeira cancela e dava bom dia. Caminhava mais um quilômetro a pé até chegar ao pavilhão onde se encontrava um grande amor.
Há exatos 3 anos e 5 meses seu filho cometera um ato insano. E foi recolhido naquele local talvez mais insano ainda. Ao chegar à unidade que abrigava seu tesouro, já estava acostumada com os protocolos. Entrava em uma pequena sala onde uma mocinha loura e simpática dizia: “Sei que a senhora não tem nada de errado, mas tenho que fazer meu trabalho.” Descalçava seus sapatos, despia suas roupas, sentava-se numa cadeira defronte à lourinha e abria as pernas. Constrangedor. Mas era capaz de fazer tudo isso e muito mais para estar lá.
Depois de liberada, era hora de ouvir os sons que faziam parte de seus pesadelos. O homem fardado balançava o molho de chaves, enfiava uma delas no grande cadeado, abria o portão de ferro e, após ela transpor a barreira que a separava de seu filho, escutava o som seco e contundente se fechando em suas costas. Logo sentia o aroma que custava a sair de suas narinas. Um cheiro ocre, ruim, indefinível. Inesquecível. Um cheiro triste. Atravessava o pátio coberto e ali, sentado num frio banco de cimento, estava seu filho a sua espera. Corriam para o abraço. Era sempre assim.
Nas poucas horas passadas juntos, ela muito falava, contava da vida lá fora. Ele muito escutava, às vezes chorava, às vezes esboçava um sorriso. Ora se mostrava deprimido achando que nunca sairia dali, ora se mostrava esperançoso por uma nova vida ao sair dali. E ela sempre lá, firme e amorosa. Mostrando a ele que o importante era mudar.
– Mãe, você deveria me odiar.
– Eu não te odeio. Santo Agostinho disse: odeie o pecado, mas não o pecador. Não aprovo o ato que você cometeu, mas jamais deixarei de te amar.
Ouvindo essas palavras, já repetidas tantas vezes, o filho recostava no peito de sua mãe e descarregava o peso do mundo que corroía suas fibras. O peso da culpa que congelava suas artérias. E sentia a esperança do perdão acenando para o seu coração.
Os ponteiros do relógio gritavam que havia chegado o fim a visita. Forte abraço trocavam. Ela beijava o rosto de seu filho, como se ele ainda fosse um menininho sendo deixado na porta da escola. Então se virava e ia andando, sem olhar para trás. Precisava ser forte.
Não derramava uma lágrima. Elas já haviam secado.
No domingo seguinte, estaria lá de volta.
15 comentários:
E o que acontece quando em vez de amor, há descaso incondicional? será que alguma mãe é realmente capaz de sentir descaso incondicional por seus filhos, Aninha? Li seu post e lembrei das mães loucas que jogam filhos nos rios ou abandonam em locais públicos dentro de sacos plásticos. E há tantas formas de abandonar filhos em sacos plásticos. Nem todas as mães visitam seus filhos na cadeia. Talvez por isso eles estejam lá.
Sabe o que mais me deixa triste em minha vida? Reconhecer que não tive um amor incondicional quando mais deveria ter tido. "é triste quando vemos que o amor não vence tudo" foi uma frase dita para mim que muito me marcou. Por mais que eu explique, que tenha meus argumentos e sentimentos, não apenas egoístas, mas também altruístas, nada disto me tranquiliza. Meu amor não venceu tudo naquele momento. De alguma maneira, liberto do romantismo, envolto da amizade, aquele amor hoje tem tentado vencer.
Aninha, é um desabafo. Seu texto me deixou com vontade de desabafar.
Às vezes cometemos atos dos quais nos arrependemos... mas temos que arcar com todas as suas possíveis consequências. Será que saberemos um dia separar nossos pecados de nossas virtudes? Ou seremos esses eternos meio anjo-meio demônio, habitando um lugar onde fé e esperança parecem súplicas eternas não realizadas?
Mães são tendenciosas... tem de sê-lo! Senão, como acreditar na superação?
Não sei se voce já esteve lá, mas descreveu muito bem. O que mais marca é o cheiro, tétrico. Só mesmo uma mãe ou alguem que te gosta muito pra encarar. Pena ter que usar esse exemplo para demostrar o amor de mãe, queria outro pano de fundo, consegue? Desculpa.
Uma vez li, na casa da tua mãe (que é minha também, aliás, sou a quinta filha!!!), em uma daquelas coleções que ela tanto gosta: Amar é...., e achei a melhor definição para o amor.
"Amar é.... apesar!"
Todos nós, mães ou não, amamos alguém incondicionalmente, e quando este alguém comete um equívoco, brigamos, ficamos com raiva, tristes, mas logo em seguida estamos perdoando, pois brigamos com eles, mas brigamos por eles também!
Amei o texto, e o mesmo me remeteu a pensamentos de amor, perdão e esperança e saudades. Sei que fui muito amada, incondicionalmente, por meus pais, sou uma felizarda!! Me recordo da última frase de minha mãe para mim, na última vez que a vi, antes do desencarne: "Eu te amo e você me ama, não se aborreça."
Que Deus esteja sempre contigo, e que você possa estar sempre com Ele também.
beijos
Sumac
Nada explica o amor incondicional de uma uma mãe a um filho? Explica sim, mas é tão divino que palavra alguma consegue explicitar o que existe no coração de uma mãe. Aliás, o amor incondicional existe e está dentro de pessoas que são verdadeiras. Como posso traduzir o que senti ao ler esse post? Realmente não sei como, mas as lágrimas podem explicar melhor que eu.
Até que ponto devemos nos penitenciar pelo descaminho do outro? Mesmo que o mesmo seja nosso "filho" válido seria com objetivos definidos tal como a doutrinação, mas essa pobre mãe submete-se a dor de tal forma, que não sei se a admiro ou comovo-me com sua sorte!
Amiga, não acredito em amor incondicional. Tudo na vida é condicional, só acontece em contrapartida de algo: Lei de Ação e Reação. O que imagino seja a alternativa a essa "incondicionalidade" (será que existe essa palavra?)descrita, é o limiar da tolerância que, para os filhos e pais, certamente é diferenciado. Foi o que aprendi com esses cabelos brancos, espertamente disfarçados. Eu não amo apesar de nada. Isso é lindo, romântico, porém retórico.
Antes de escrever sobre este texto, que me tocou muito, dei uma lida nos comentários anteriores (com a melhor das intenções, viu, gente). Percebi que, em cada um, predomina um sentimento: abandono, tristeza, esperança,revolta, autoproteção... Como todos os que já escreveram, me pergunto sobre esse amor incondicional, que, para mim, é o amor verdadeiro, original, que saiu do "forno" de Deus. Hoje em dia penso que esse amor de verdade é ver além: além da atitude, além da palavra, além do gesto. E amar a essência, não a aparência. Mas, como diz o meu marido, essa sou eu, pensando... :) Um lindo dia pra todos!
Esse foi de emocionar mesmo. Dá pra sentir a dor e a angústia dela. Essa semana li algo sobre o amor, e juro que não lembro onde, mas dizia mais ou menos o seguinte:
Quando se ama alguém de verdade, para esse amor ser impecável é preciso conhecer todas as coisas que fazem aquela pessoa sofrer. Porque o verdadeiro amor evita sofrimentos desnecessários.
Eu adorei isso e revi certas coisas em minhas relações. Falei demais né? Mas uma coisa puxa a outra e queria compartilhar isso com você. Beijos!
Minha querida,
este texto tocou meu coração de forma devastadora.
Conheço bem este amor materno infinito. É a existência dele que nos faz continuar acreditando nos seres humanos.
Seu texto está cada vez melhor!
Se é que isto é possível!
Beijo
Nossa o comentário do Thiago me deu peninha. Amigo lindo amado, tantos amigos aqui te amando, olha pra frenteeeeeeeee, e não pra trás!
Ana,
concordo em gênero, número e grau com tudo que escreveu.
Aliás acredito que qto mais sofremos mais descobrimos a força do amor seu pelas pessoas e das pessoas por vc!
Ele vence tudo sempre!
Lindo, Ana. Me emocionei.
E não só pelas similaridades, das quais somos solidários (seus leitores), mas pelo texto sentido,talvez catársico. Os sentidos à flor da pele do narrador acentuam ainda mais a discrepância entre a dor e o amor incondicional. Bravo!
Ana,
Emocionante!! E pensar em quantas mães passam por isso. "Um cheiro triste", é ótimo.( dei uma de tirinha do Mestre Novaes )
beijos
Me fez chorar mais uma vez, danada!
Parabéns, amore!
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