quarta-feira, 6 de junho de 2007

O menino e o mar

Aquele dia eu havia acordado enviesada. Não sou muito de ter insônia, muito menos de ficar deprimida. Mas a noite anterior tinha sido um tormento. Rolei muito na cama tentando pegar no sono. Minha mente estava ativa demais e não deixava meu corpo descansar. Na minha cabeça só vinham: problemas, problemas, problemas. Fazia quase cinco meses que eu estava desempregada. A falta de dinheiro e de perspectivas estava me deixando maluca. Se não fosse o apoio moral e financeiro de meu marido, acho que teria enlouquecido. Mesmo assim, mais um mês estava se acabando e, daqui a poucos dias, novas e muitas contas estariam batendo à minha porta. Por isso não conseguia dormir. Por isso só preguei os olhos alta madrugada. E ainda por cima despertei cedo. A cama não estava sendo uma boa companheira.
Meu marido saiu com nossas filhas, seguindo para a escola e, depois, para seu trabalho. Quando a porta se fechou, fecharam-se diante de mim as possibilidades do que fazer naquele dia. Não precisava correr para não chegar atrasada no trabalho. Não precisava fazer o almoço, nem arrumar a casa, porque ainda tínhamos o luxo de uma empregada. Quase voltei para a cama para ver se, dessa vez, ela me serviria de amiga e confidente. Mas pensei: que nada. Preciso de luz. Preciso de ar puro. Preciso respirar, senão minha amargura vai acabar me sufocando.
Peguei o carro e decidi ir para a praia. Dirigi até a praia mais deserta de minha cidade. Não queria ver muita gente. Sabia que, em pleno dia de semana, provavelmente só encontraria surfistas, e, mesmo assim, eles estariam no mar, bem longe de mim. Abri minha cadeira na areia fofa e fiquei lá, pensativa, olhando aquele azul infinito à minha frente. Alguns minutos depois, vi que, ao longe, uma família caminhava para perto de onde eu estava. Logo resmunguei comigo mesma. Queria ficar sozinha, lembra? Mas minha rabugice não durou muito tempo.
Aquela era uma família especial. Embora a princípio parecesse igual a todas as outras: mãe, pai, dois filhos. Um devia ter uns sete anos. O outro, uns quatro. Este menorzinho tinha um brilho diferente. Ele não parava de sorrir. Era um sorriso que ia de orelha a orelha. O sorriso mais bonito do planeta. Parecia não ligar para o fato de estar careca e magrinho, nem de possuir cicatrizes pelo corpo, na altura dos pulmões e do abdômen. Muito menos parecia se importar com o fato de ter no nariz uma daquelas sondas para a alimentação de pacientes que estão com alguma doença grave. O menino apenas sorria. Seus olhinhos vibravam, transmitindo: “O mar, a praia. Eu estou na praia!”
Fiquei quietinha olhando. Peguei um livro na bolsa e fingi que lia. Não queria importunar aquele momento tão sublime. O pai do menino começou a encher uma daquelas piscininhas plásticas, usadas por bebês. Em seguida, a mãe tirou de uma sacola algumas garrafas de água mineral e as virou na piscina. E o menino finalmente pôde tomar seu banho na praia. Não era um banho de mar, mas era o melhor que seus pais poderiam lhe oferecer. Àquela altura, meus problemas financeiros já tinham se transformado numa nuvem levada pelo vento dos meus pensamentos. Uma nuvem bem pequena, diga-se de passagem.
O irmão mais velho fazia de tudo para divertir o menino. Ia na beira da água e buscava conchinhas, ofertando ao irmão. Começou a construir um castelo de areia à beira da piscininha, parecendo querer fazer com que o irmão fosse viver naquele mundo de sonhos, como um príncipe de um reino fantástico onde criancinhas não adoecem. A mãe, então, calçou luvas de borracha nas mãozinhas frágeis do filho, para que ele também pudesse mexer na areia e construir seus próprios castelos. O menino afundava seus dedos na areia, rindo com gosto da brincadeira divertida. E eu afundava meu corpo na cadeira de praia, morrendo de vergonha da ridícula noite de insônia que havia tido.
De repente, os olhos do menino se fixaram no mar. Consegui ouvi-lo dizer: “Mamãe, eu queria muito molhar meus pés na água.” O pai e a mãe cruzaram os olhares por alguns instantes, sabendo que aquilo talvez fosse muito arriscado. Mas não disseram palavra alguma. O pai pegou o menino no colo e o conduziu até a beira do mar. Lá chegando, os quatro caminharam felizes por alguns minutos, embalados pelo vaivém das marolas lambendo seus pés. Com suas mãozinhas emborrachadas, o menino catou conchinhas e ofereceu ao irmão, retribuindo os presentes que ganhara momentos antes.
O sol estava ficando mais forte e a mãe, previdente, sacou da bolsa um guarda-chuva e protegeu seu pequeno tesouro dos raios. Nada seria motivo para aquela farra ter fim. A família ainda caminhou à beira-mar mais um pouco, agora com o menino no colo. E tiraram algumas fotos. Aquele instante mágico precisava ficar registrado não apenas no coração, mas também no papel. Quando os anos se passassem e o irmão mais velho já fosse um homem, certamente iria gostar de mostrar a seus filhos o tão adorado tio que eles não puderam conhecer. E mais do que isso: como aquele dia na praia havia sido tão prazeroso, apesar de todas as adversidades.
A família arrumou suas coisas e subiu para o calçadão. Percebi que iam se sentar numa mesinha de um quiosque para desfrutar ainda mais daquele convívio tão longe da rotina de um hospital. Eu não podia perder a oportunidade de acompanhar de perto aquela cena. Meu coração estava tão apertado e, ao mesmo tempo, tão grato por estar presenciando aquilo tudo... Era uma lição de vida para eu poder me lembrar que, no mundo, há solução para tudo. Há solução para a falta de dinheiro e para o desemprego. Mas não há solução para a falta de saúde. No entanto, estava aprendendo ali que o amor é capaz de superar a dor.
Fui até o balcão do quiosque e pedi um refrigerante. E o bebi leeeeentamente, leeeeentamente... Ouvi quando o menino disse: “Gente, queria tanto comer um peixinho assado!” E sua vontade foi feita. Em pouco tempo, lá estava o peixinho na mesa. Tão imponente quanto o pão da Santa Ceia. O menino era só sorrisos. Sua família era só sorrisos – apesar de uma leve sombra por trás do brilho de seus olhos. Reparei que o menino não comeu quase nada. Mas estava nitidamente feliz. Muito, muito feliz. Até que o escutei dizer que estava ficando cansado. A mãe retrucou: “É, já está tarde mesmo... Ainda temos que voltar ao hospital.” Imediatamente o pai se levantou e pagou a conta. Todos se levantaram radiantes como crianças num dia de domingo. E partiram, deixando para trás um rastro de luz e esperança.
E eu fiquei lá naquele balcão. De queixo caído. Uma lágrima rolou de meu olho esquerdo, estacionando sobre meu peito. Bem sobre o coração. Fiquei pensando o que os médicos daquele menino diriam quando seus pais relatassem a aventura que haviam vivido naquela manhã. Certamente os censurariam. Os chamariam de loucos, inconseqüentes, irresponsáveis. Poderiam até ser, diante dos olhos da ciência. Mas, diante dos olhos do amor, eles eram os pais mais maravilhosos que uma criança poderia ter. Pais que não esqueceram que seu filhinho, embora doente, ainda é uma criança. Pais que talvez tenham realizado o sonho do menino de rever, por uma última vez, o mar.
Pensei em quanto tempo mais aquele menino iria viver. Quem sabe ele não ficaria curado? – um rasgo de esperança cortou a minha mente. Mas pelo olhar preocupado dos pais, dava para perceber que esta era uma hipótese muito remota. Ainda assim, tive a sensação de que aquele sorriso infantil não se apagaria nunca. Dentro de mim, não se apagaria jamais. Naquela mágica manhã, aprendi que os problemas devem ser encarados com um grande sorriso no rosto. Um sorriso que vai de orelha a orelha. O sorriso mais bonito do planeta. Porque mesmo que a aparência exterior insista em mostrar que as coisas não vão nada bem, a esperança não morre. O amor não morre. E a vida sempre continua para aqueles que têm fé e forças para lutar.
Cheguei em casa completamente mudada. Uma criança e sua família haviam feito uma revolução dentro de mim. A partir daquele dia, passei a dormir como um anjo. E um dia sonhei que um anjinho careca dava um grande sorriso para mim. Acordei fortalecida e certa de que a vida é justa e bela. Embora nem sempre pareça.
Fiz este conto em homenagem a Victor Fernandes José, filho da minha amiga Fernanda Fernandes – fé duas vezes no nome! –, que foi chamado de volta à espiritualidade bem cedo... E, com ele, acabei arrebatando o 4º lugar no concurso de contos e crônicas promovido pela Edições AG (o prêmio é a participação em uma coletânea com os vencedores, que será lançada em agosto).

5 comentários:

Ana Lúcia Prôa disse...

MEU DEUS! Eu mesma quero fazer o primeiro comentário! É muita coincidência, mas este conto e o "Cabeça de Mulher" começam praticamente da mesma forma. MALUQUICE! (Ou falta de talento? Prefiro apostar na maluquice...)

Cláudia Lima disse...

Amiga,
Vc é iluminada!
E fico feliz que mesmo longe, possa sentir sua presença, lendo seu blog!
Bjs

Patrícia Simoens disse...

Ana, não tem o ócio criativo? Tem a insônia criativa também. Quando a gente que gosta de escrever fica com as letras entaladas, algo acontece pra que elas possam se enfileirar no papel ou na tela. E aí podemos dormir melhor...
Que pena que já fiquei em dia com suas obras,quero mais!!!
Bjs.

Anônimo disse...

Ana Lucia, adorei seu conto...
Victor foi um "criança adulta e sábia", diante de tantas picadas, quimioterapias e cirurgias se mantinha sereno, traquilo e diversas vezes solicitava a mãe que lesse passagens da bíblia para ele, na verdade, ele apontava com seu pequeno dedo o que deveria ser lido...Muitas vezes lições de vida e otimismo...
A visita ao mar só ficamos sabendo depois que chegaram, porém diante de tanta alegria e satisfação não tinhamos o que falar... apenas concordar que naquele momento a sensibilidade e o coração de mãe falavam mais alto...Sempre fui cuidadoso, um pouco rigoroso na conduta com nossos pequenos guerreiros, inclusive com a própria Fernanda , mãe do Victor, más naquele momento esqueci de todo o aprendizado, neutropenia, infecção, dieta, transfusões e pude nitidamente perceber que a voz do coração sempre fala mais alto.
Creio que diante dos poucos desejos do Victor, esse talvez tenha sido o maior... VIVER UM DIA, MESMO QUE FOSSE UM DOS ÚLTIMOS, E DISFRUTAR COM SUA FAMÍLIA UMA BELA MANHÃ DE SOL À BEIRA DA PRAIA E SABOREAR UM PEIXINHO FRITO...
Sou Daniel, um dos médicos que cuidou do Victor e de sua família.
Parabéns pelo conto, Daniel
04/09/09

Fabrício Dantas disse...

Já li vários comentários e post,mais com esse intuito e com essa sabedoria,eu tive o prazer de conhecer esse anjo e conviver e sem exatamente as palavras deferidas nestas linhas ( e as lagrimas rolam em meu rosto )E também sei o quão fortes foste essa família que sempre passava força,mesmo sabendo que suas forças eram recuperadas debaixo do chuveiro ou com um sorriso.Amo essa família e AMEI a postagem feita pela autora.