Era uma noite simples, como tantas outras pelas quais enveredei após sair com meus amigos. Beiravam as cinco horas da manhã, e lá estava eu, subindo pelo que pareceu a milésima vez aquela avenida deserta para poder pegar meu ônibus e chegar à santa paz do meu lar.
Sim, o que muitos podem achar é que sou louco. Talvez eu seja mesmo, mas peço que cada um interprete da forma que achar melhor e que não me julgue pelos meus erros passados.
Após sair de uma boate onde comemorei o aniversário de um grande amigo, caminhei com outro amigo em direção aos nossos respectivos pontos de ônibus. Entretanto, ao seguirmos pela avenida onde os ônibus passavam antes de chegarem ao ponto final, o ônibus que meu amigo deveria pegar pra ir pra casa passou. Começamos uma pequena discussão sobre ele ter que pegar aquele ônibus e eu ir sozinho até o ponto final. Claro que eu, Super-Homem da meia-noite, insistia que, se ele não pegasse o ônibus, sabe-se lá que horas ele poderia pegar outro, enquanto o meu passava a toda hora e sempre tinha um no ponto final. Relutante, ele assentiu, claro. Sendo assim, lá estava eu, depois que meu amigo pegou o ônibus, caminhando sozinho pela avenida que, àquela hora, só tinha uns poucos festeiros esperando pra ir dormir em casa.
Foi então que aconteceu. Dois vultos magros e altos saíram das sombras e vieram em minha direção por trás. Não sei se foi o medo, mas fiquei tão imóvel quanto um carvalho centenário numa tempestade. Quando me abordaram, nenhuma palavra foi dita. O primeiro me segurou pelo pescoço, numa espécie de mata-leão meio frouxo que não visava me sufocar, mas me imobilizar, para que o segundo atingisse seu objetivo: cravar uma faca na parte interna da minha coxa direita e evitar qualquer reação que eu pudesse ter contra eles. Afinal eu, jovem alto beirando 1,90 m de altura, forte e quase sóbrio seria um problema pra eles se estivessem desarmados. Acho que eles não quiseram a dúvida e, por isso, usaram a garantia de me apunhalar com uma faca. Após a punhalada, um deles pronunciou as palavras que ficaram gravadas a ferro quente na minha memória:
– Perdeu, e isso é só o começo...
O segundo se adiantou e disse:
– Passa telefone e dinheiro.
No meu desespero, fiz o que devia fazer: enfiei a mão nos bolsos, tirei o que tinha lá (meu celular, meu molho de chaves e 10 reais que tinha sobrado de troco da boate) e disse que era tudo o que eu tinha. O segundo tirou a faca pra pegar meu telefone e o dinheiro, pouco antes do primeiro me soltar e meu peso cair todo sobre a perna lesionada. Foi então que ela veio. A Dor, lancinante e impiedosa, me atingiu com toda a sua ira. Não havia mais medo, nem desespero, só a Dor que me pegou de surpresa e levou todo o resto embora, inclusive os dois vultos encapuzados que a trouxeram. E minha voz, com um berro, se esvaiu da minha garganta.
Lá estava eu. Sozinho naquela avenida. Nem mesmo os boêmios esperando seus ônibus estavam mais nos pontos. Nem um carro passava. Nem um rato grunhia no esgoto abaixo dos meus pés. Sozinho. Nunca tive medo de ficar sozinho. Era o que eu menos queria naquele momento.
De repente, a Dor sumiu. O que veio no lugar foi a minha maior qualidade: a razão. Pensei no meu estado e olhei o corte, a faca entrou uns 8 cm na minha coxa, mas não parecia ter atingido nenhum nervo, eu conseguia andar. Foi o que eu fiz, andei até a esquina da avenida, onde achei um telefone público, um orelhão. Tirei o fone do gancho, mas percebi uma coisa: levaram meu celular, e com ele todos os números que eu nunca decorava. Fugindo do desespero, usei minha racionalidade e liguei pra emergência dos bombeiros. Infelizmente, como eu esperava, ninguém me atendeu. Liguei para o Samu. A atendente, com voz de revoltada, disse que demoraria de 15 a 20 minutos. Até lá meu sangue já estaria todo no chão.
Voltei a pensar. Lembrei o número de um celular, o do meu melhor amigo, pra quem eu ligava a cobrar sempre, por isso sabia o número de cabeça. Ele me disse que estava em casa, eu falei meu estado e perguntei onde ficava o hospital mais próximo. Ele me disse, mas era um pouco longe pra ir a pé com a coxa esburacada. Ele me mandou seguir para o batalhão de polícia, que era onde eu ia pegar meu ônibus, porque era mais perto e lá eles poderiam me ajudar. Foi o que eu fiz. Caminhei um quarteirão até chegar lá e um policial militar estava na porta, fazendo guarda. Ele me colocou pra dentro do batalhão e ligou pra emergência mas, assim como eu, não obteve sucesso. Decidido a me ajudar, ligou pra central e pediu uma viatura da PM pra me levar ao hospital. Dois minutos depois lá estava eu, sentado no banco de trás de uma viatura da PM indo pro hospital.
Já no hospital, fiquei entre os acidentados terminais da emergência esperando atendimento. O que eu vi me preocupou mais do que minha coxa. Mas não é sobre isso que vim escrever. Depois de esperar uns minutos que pareceram uma eternidade na emergência, me levaram para a sala de sutura, onde fui gentilmente costurado pelo assistente da cirurgiã vascular de plantão. Meu amigo aniversariante foi me encontrar lá, sua expressão beirando o desespero. Me trouxe pra casa, de táxi, e explicou pra minha família o que eu expliquei pra ele no caminho.
E hoje estou aqui, em casa há uma semana, escrevendo esse relato verídico sobre a incapacidade do cidadão. O cidadão que é capaz na hora de pagar seus impostos, mas não pode andar sozinho na rua. Aquele cidadão que respeita as leis, mas não poder esperar um pingo de segurança nas ruas. Sem falar naquele cidadão que ouve promessas milagrosas de políticos e é capaz de votar, enquanto não pode contar com uma simples ambulância quando precisa.
Também escrevo porque espero que esse relato ajude a pôr juízo na cabeça daqueles que pensam que são Super-Homens, como eu pensava que era. Não pensem que é demagogia de minha parte, mas, sinceramente, não desejo pra ninguém o que eu passei, e sei que eu poderia ter evitado se pusesse acima da circunstância a prudência.