domingo, 25 de maio de 2008

A marca

Foi difícil tomar aquela atitude. Mas, um dia, encheu-se de coragem e arrancou de seu dedo a aliança que insistia em lembrá-la dos muitos e muitos anos em que se dedicara a um só. Ela estava lá em seu dedo apenas como enfeite fazia uns seis, sete, oito meses... Perdera as contas. Seu homem saíra de casa cansado da rotina, foi o que disse. E ela achou que seria passageiro. Pra que tirar a aliança então? Ele vai voltar.
O aro dourado em seu anelar era o símbolo da esperança. Olhava-o sempre com a certeza do retorno daquele a quem amava. Ou a quem se acostumara.
Não demorou muito para vê-lo desfilando com uma outra. Tipinho interessante, tão diferente dela. Tão cheia de vida! E ela ali... Como vela apagada com cera seca escorrida.
Ainda assim, não tirou a aliança. Fazia parte de seu corpo. Retirá-la seria tão violento quanto uma amputação. Não se sabia mais onde acabava a aliança e onde começava a pele. Era tudo uma coisa só.
Numa manhã, abriu os olhos e a primeira coisa que viu, pousada sobre seu travesseiro, foi a aliança-dedo. Esticou ainda mais o olhar e viu o travesseiro dele vazio. Por que ainda teimava em colocá-lo na cama? Sentiu náuseas. Levantou-se e o enjôo só fez piorar. Pensou em tomar um remédio, mas, a cada vez que olhava para sua mão esquerda, seu mal-estar se acentuava. Não era caso de remédio...
Foi aí que a coragem lhe subiu à cabeça, pegando um atalho pelo lado direito do peito, para não esbarrar no coração. Havia chegado a hora. Com os dedos da outra mão, começou a puxar aquele elo que não a ligava a mais ninguém. O elo insistia em ficar. Mas ela estava resoluta. Nada que um pouco de água e sabão não resolvessem. E foi com alívio que se deu a extirpação. O enjôo passou.
Mas nem deu tempo de comemorar a vitória sobre seus sentimentos. Seus olhos se arregalaram de pavor ao ver que, em lugar da aliança, restou em seu dedo um sulco. Profundo. Quase tão profundo quanto o sulco deixado por ele em seu íntimo.
Esfregou, esfregou, esfregou. Massageou toda aquela cavidade circular deixada pela aliança, mas nada de desaparecer. Ela era impotente perante a força daqueles anos e anos passados com alguém. Impossíveis de se apagar.
Passaram-se dias, semanas, meses... Como tatuagem, lá permanecia a marca de sua aliança.
Cansada de olhar para o símbolo do que não existia mais, resolveu colocar uma prótese: um belo anel com uma tremenda ametista se fixou por sobre o sulco.
Não o tirava para dormir. Não o tirava para tomar banho. A aderência foi total, sem rejeição da pele.
Começou a se sentir leve. Sua chama voltou a se acender. Decidiu se amar.
Um dia, resolveu arrancar a prótese. Não precisava mais dela. E que surpresa: a pele havia se regenerado. O sulco se preencheu de alegria de viver. As únicas marcas em seu corpo, agora, eram duas linhas de expressão no rosto que surgiam a toda hora, a cada novo sorriso.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

E o inevitável aconteceu...

Cansei de fazer matérias, para as revistas de saúde em que trabalhei, sobre os problemas da visão. Um deles não era especificamente um problema, e sim um carma que todo cidadão que passa dos 40 anos precisa carregar: a presbiopia. Nomezinho nada elegante cujo sinônimo é, pura e simplesmente, ‘vista cansada’. Se homens e mulheres na casa dos 40 atualmente são sarados e cheios de disposição, isso não quer dizer nada em relação aos olhos: o corpo pode até não se cansar, mas a vista – essa danada – se cansa sim, senhor!
Aos 20 e poucos anos, eu pensava: “Que nada, sempre tive uma visão ótima! Leio até as letras menores de bula de remédio!” Mas eis que, cerca de dois meses atrás, me deparo dentro da Drogaria Popular lutando contra o rótulo de um produto para cabelos. Caramba, não conseguia ler nada... Embaçava tudo! Queria um produto que – milagrosamente – alisasse meus cabelos cacheados. Mas e se aquele fosse para encaracolar ainda mais os fios??? Achei melhor largar o produto na prateleira e ir embora antes que alguém percebesse o meu embate.
De lá pra cá, a coisa só foi piorando... Ler jornal, ler livro, ler qualquer porcaria a menos de dois palmos do meu nariz era como se eu tivesse bebido todas: eu só via um embaralhamento de letras, transformando o papel branco em cor cinza.
Foi então que fiz um flashback às redações das tais revistas de saúde. Meu Deus! Foi duro acreditar! Em fevereiro, comemorei (comemorei?) os 39 anos vividos até então. Estava eu agora percorrendo o meu quadragésimo ano de vida. Eu disse quadragésimo? Sim! E então, em letras colossais dentro da minha mente (esta sim, enxergando muito bem ainda!), li em néon a palavra: PRESBIOPIA!
Pior que praga de ex-sogra, não passei impune por ela... Corri para o meu amado Google:

PRESBIOPIA OU VISTA CANSADA
É um problema de visão para perto, inevitável após os 40 anos de idade, onde o indivíduo tem dificuldade para ver imagens próximas e vai precisar de óculos para enxergar de perto (menos de 45 cm).

Como assim, INEVITÁVEL???? Não gostei dessa inevitabilidade, mas tive que engolir em seco. Lá estava eu... presbíope! Cansada – não apenas da vista, mas principalmente dela.
Não tive alternativa a não ser correr ao oftalmologista, o mesmo que consultei há uns três anos e que havia dito que minha visão estava MARAVILHOSA! Tinha esperança de que ele continuasse achando o mesmo... Saí do consultório com uma receita de óculos na bolsa e com a seguinte sentença retinindo em meus ouvidos: “Você não tem doença alguma. É apenas fisiológico!” Pois bem, caro leitor, fique sabendo disso: assim como o número 1 e o número 2 (e também como o número 3, forma como sabiamente minha filha caçula nomeou o ‘pum’), ter presbiopia também é fisiológico. Atravessou a casa dos 40? Prepare-se!
Escrevo estas linhas agora portando no rosto lindos óculos fashion, com hastes estilosas e armação num lilás metálico divino, com lentes megaisso e superaquilo! (Eu não iria deixar por menos: tudo o que a moça da ótica disse que era o melhor, eu fiz! Parcelava em dez vezes, né? Tinha que aproveitar...) Neste momento, me sinto muito bem-vinda ao mundo dos quatro olhos! Ser presbíope é ruim, mas pior ainda é ficar sem esse acessório indispensável a uma mulher de cabelos encaracolados. Paro por aqui, porque vou correndo até a drogaria comprar o tal produto para alisar minhas madeixas! Sem medo de ser feliz.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Uma carta para Zélia


Zélia se foi... E eu fiquei. Ela estava com 91 anos... Eu estou com 39. Começou a escrever tarde suas histórias. E eu tenho achado que está tarde demais para mim... Tenho demorado demais a fazer o que também demorou com Zélia. Mostrar ao mundo quem eu sou. Por anos e anos, ela viveu à sombra dos escritos do marido, o grande Jorge. Salve Jorge! Tão amado... Por ela, por mim, por todos. Era a primeira leitora dos livros do marido – que escrevia tudo à mão. Datilografava os originais. Dava pitaco. Às vezes aceitos, outras vezes não. Primeira revisora do marido? Pode ser... Preparadora de originais dele? Com certeza a primeira.
E eu sigo como Zélia, ao longo dos anos... À sombra dos mais diversos autores. Dos medíocres e dos brilhantes. Pelos medíocres (aqueles que separam com uma vírgula o sujeito do predicado, que escrevem ‘enquanto escritor’...), faço com que pareçam brilhantes. E pelos brilhantes? Bem, a esses concedo meus aplausos. E uma pitadinha de inveja.
Sinto que está na hora de sair do armário! Ou melhor, sair do Word e conquistar o mundo! Assim como Zélia fez. Aos 63 anos. Mas, se a mim fosse permitido escrever uma missiva a ser entregue por anjos, falaria assim para ela, que foi e sempre será uma das minhas escritoras preferidas:

“Zélia, minha querida, te adoro muito. Sempre te adorei. Sempre li suas histórias como se fosse uma tela de cinema passando pela minha mente. Mas, dessa vez, terei que discordar de você... Não quero esperar os sessenta para ser lida pelo grande público. Por mais respeito que eu tenha pelos mais velhos, por mais que eu saiba que a expectativa de vida não pára de aumentar, quero chegar aos quarenta já sendo lida e querida. Como você, minha querida Zélia.
Sabe, não fiquei mais triste do que deveria pela sua partida porque sei que uma pessoa como você não foi feita para ficar ligada a tubos e aparelhos. E porque sei também que, agora, você está com seu amado Jorge.
Em vida, quis tanto te entrevistar... Cheguei perto, mas a pauta foi para outra pessoa. Não deu para te conhecer pessoalmente... Espero, ainda assim, que você receba agora o meu amor e a minha gratidão por tudo de lindo que fez pela literatura no Brasil. E que daí, do paraíso que deve ser o mundo celestial dos escritores, você me abençoe, Zélia querida. Que peça a Deus (de quem está tão pertinho agora) que me ajude a ser pelo menos um pouquinho igual a você. Que meus caminhos se abram. Que eu tenha a sua coragem. Que eu tenha a sua simpatia. Que eu tenha o seu carisma.
De resto, deixa comigo!”

Uma salva de palmas para Zélia. E nem uma pitadinha de inveja. Ela fez por merecer!